
Por Rodrigo Carelli, em Conjur
A Austrália e a Holanda ostentam, respectivamente, o sétimo e o oitavo lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Os dois países também figuram em quarto e quinto lugar na listagem comparativa de países em relação ao produto interno bruto (PIB) per capita. São, assim, duas nações altamente desenvolvidas nos aspectos sociais e econômicos, ocupando posições similares nas duas searas, que estão obviamente entrelaçadas. Sem qualquer coincidência, ambos os países estão imbuídos firmemente no combate às relações disfarçadas de trabalho, por meio da contratação de falsos trabalhadores autônomos, o que aqui neste país tropical se convencionou chamar de “pejotização”. E para esse combate os países desenvolvidos editaram recentemente leis bastante duras em relação à fraude pela utilização de contratos civis para contornar a fruição de direitos trabalhistas pelos trabalhadores.
A Austrália veio, por meio de duas leis de nomes sugestivos, uma de 2023 (The Closing Loopholes Act, algo como “Lei de Fechamento de Brechas”) e outra de 2024 (The Closing Loopholes Act nº 2), reforçar o Direito do Trabalho com uma extensa série de novos direitos, como a criminalização da retenção salarial ou realização de descontos ilegais (wage theft, em livre tradução: roubo de salário), fortalecimento da atuação de sindicalistas, proteção contra discriminação e assédio, normas de saúde e segurança, direito à desconexão, direito de resistência a cláusulas contratuais injustas, direitos para equiparados a empregados (employee-like workers), entre outros.
No entanto, salta mesmo aos olhos os dispositivos de proteção contra a fraude trazidos pela reforma trabalhista progressista. De início, é reafirmado o princípio da primazia da realidade sobre a forma, dispondo que a condição de empregado e empregador “seria determinada pela avaliação da natureza real, concreta e verdadeira da relação de trabalho, considerando a “totalidade” da relação”, utilizando-se a técnica de feixe de indícios ou “multifatorial”.
Somente os trabalhadores com alta remuneração, que percebam salário superior a algo em torno de 54 mil reais mensais, podem optar por não aplicar o princípio da primazia da realidade (opt-out), sendo que, nesse caso, a natureza da relação será determinada pelos termos do contrato, e não pela sua denominação. Importante dizer que o trabalhador de alto salário pode revogar unilateralmente o opt-out a qualquer momento, passando a prevalecer o teste multifatorial.
O recurso da fraude à relação de emprego (sham contracting), ao contratar um trabalhador de forma não razoável empregado como autônomo ou pessoa jurídica, ou mesmo dispensar ou ameaçar dispensar um trabalhador para recontratá-lo como autônomo para fazer o mesmo trabalho, é um ilícito com penalidade robusta que pode chegar a até um milhão, setecentos e cinquenta mil reais.
Há outro dispositivo que permite a verdadeiros trabalhadores autônomos pleitear a ilegalidade de cláusulas contratuais, entre outros motivos, se os termos do contrato em questão impõem uma exigência severa, injusta ou não razoável a uma das partes do contrato ou se o contrato de serviços como um todo prevê uma remuneração total pelo trabalho realizado que é inferior a de empregados ou prestadores de serviços autônomos similares.
A nova lei também permite que os trabalhadores terceirizados requeiram os mesmos direitos previstos na convenção coletiva aplicável à tomadora de serviços, interpretação que foi bloqueada por suposta inconstitucionalidade (!) pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil.
Holanda contra os falsos pejotizados
Os Países Baixos, mais conhecidos por estas bandas como Holanda, por sua vez estipularam regras detalhadas para combater as fraudes pelo uso da pejotização. A regulamentação teve origem em decisão da Suprema Corte holandesa de 2023 que afirmou a aplicação do princípio da primazia da realidade a partir da análise multifatorial, incluindo o grau de autoridade exercido pelo cliente, a forma como o trabalho está integrado na organização do contratante e a medida em que o trabalhador se comporta como um empreendedor, como ter múltiplos clientes, manter um site da empresa e realização de investimentos no negócio. Assim, a Suprema Corte afirmou que a mera formalização contratual não é suficiente para demonstrar a condição de empreendedor, aplicando-se o teste com vários fatores para se verificar a real condição de prestação do trabalho.
A nova lei dispõe que são características de empregado se: (1) o empregador fornece instruções e supervisiona o trabalho do empregado, e (2) o trabalho é de natureza estruturada. Já a lei considera que as seguintes características são típicas de um trabalhador autônomo ou empreendedor: (1) responsabilidade pelos materiais utilizados, (2) conhecimento específico para o qual é contratado e (3) assumir riscos financeiros. Se o trabalhador apresentar um número maior de características associadas ao de um empreendedor, ele será classificado como tal. Se o trabalhador apresentar um número maior de características de empregado, assim será classificado. No caso de ambas as características estarem equilibradas, o juiz considerará características adicionais, que incluem (1) trabalhar para vários clientes, (2) fazer investimentos em seu próprio negócio e (3) atuar em uma capacidade administrativa como empreendedor (por exemplo, registrar-se na Câmara de Comércio e emitir faturas).
Além disso, e talvez mais importante, a norma traz uma presunção legal da existência da relação de emprego para quem percebe até 33 euros por hora, o que daria em torno de R$ 210, algo em torno de R$ 46 mil mensais. Neste caso, o empregador deverá comprovar que não há, no caso, uma relação de emprego. A lei será emendada para se adequar à decisão de 2025 da Suprema Corte, que ao final elencou 9 critérios para a definição do empregado: a natureza e a duração do trabalho; o grau de direção e controle sobre os horários e os métodos de trabalho; integração do trabalhador na organização da empresa; obrigação de realizar o trabalho pessoalmente; como se deu a contratação; como a remuneração é determinada e paga; se o trabalhador assume o risco do negócio; tratamento legal e tributária da relação; extensão externa do empreendedorismo.
A lei deverá entrar em vigor em janeiro de 2026, mas desde o início de 2025 as autoridades tributárias holandesas já estão autorizadas a realizar auditorias nas empresas para o combate aos falsos pejotizados (bogus self-employment).
Percebe-se, logo de cara, duas coisas: um senso de responsabilidade bem maior da Suprema Corte holandesa do que a similar brasileira, que vem, pelo contrário, destruindo toda a construção de critérios realizada pela doutrina e justiça trabalhista há décadas e tentando criar um sistema inédito no mundo, em que prevalece o contrato sobre a realidade, tentando criar um salvo-conduto para a fuga ao direito do trabalho, chegando ao despautério de ameaçar, bem ao estilo Donald Trump, retirar a competência da Justiça do Trabalho para verificar a existência da relação de emprego “se ela não se comportar da forma que deseja”.

O outro ponto que se percebe é como as duas nações desenvolvidas estão preocupadas em combater a fraude à relação de emprego, fazendo reformas na lei para melhor atacar o problema, bem ao revés do que pretende o Supremo Tribunal Federal, que se preocupa justamente com o fato de que a Justiça do Trabalho vem combatendo as relações disfarçadas de contratos civis, como expressamente impõe a Recomendação nº 198 da Organização Internacional do Trabalho. O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal pode nos afastar dos melhores exemplos das nações mais desenvolvidas social e economicamente em todo o mundo. O que será do Brasil se a Suprema Corte continuar em seu caminho destrutivo do direito do trabalho?