Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou/ Com uma carta na mão/ Ante surpresa tão rude/ Nem sei como pude chegar ao portão. Os versos de Mensagem, canção imortalizada nas vozes de Isaurinha Garcia e Maria Bethânia, remetem ao tempo em que o serviço postal fazia parte do imaginário e do cotidiano da população brasileira. Fundada em 1969 com o objetivo de padronizar o atendimento e estender por todo o País a possibilidade de envio e recebimento de correspondências e encomendas, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) viveu décadas de glória, mas hoje enfrenta a necessidade de se adaptar a um mercado em transformação e sofre com o assédio dos setores que desejam sua privatização. Embora rechaçada pelo presidente Lula, a proposta voltou à tona desde que o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) anunciou que os Correios apresentaram um déficit de 3,2 bilhões de reais em 2024, correspondente à metade do buraco de 6,3 bilhões apontado pelo Banco Central para um conjunto de 20 empresas federais.
Tanto o governo quanto a direção dos Correios afirmam que o déficit é circunstancial e se deve, entre outras coisas, aos investimentos feitos nos últimos dois anos para reverter o sucateamento da empresa durante o governo Bolsonaro, quando chegou a ser incluída no Plano Nacional de Desestatização. Após o anúncio da lista de estatais deficitárias, a secretária de Empresas Estatais do MGI, Elisa Leonel, disse que o caso dos Correios demanda a atenção do governo: “É uma empresa que está em um setor, o serviço postal, que enfrenta crise no mundo inteiro. Temos discutido medidas de sustentabilidade”. A ministra Esther Dweck, por sua vez, avalia que “o déficit não representa nenhum problema” e que o Tesouro não terá de aportar dinheiro nos Correios.
O presidente da estatal, Fabiano Silva esteve com Lula para discutir formas de acabar com o déficit no prazo mais curto possível: “Desde que assumimos os Correios, trabalhamos duro para recuperar a empresa. Foram dois anos de medidas estruturantes, de saneamento financeiro e de preparação para um novo ciclo de crescimento. Apresentamos esse plano robusto que está sendo executado ao governo federal e iremos intensificar a sua implementação em 2025. Estamos prontos para virar essa página”, diz.
Segundo o MGI , os investimentos na estatal somaram 830 milhões de reais em 2024, aumento de 9,2% em relação ao ano anterior. Embora não adiante valores, Silva afirma que este ano haverá novos investimentos e projetos: “Nossa estratégia é inovação, modernização operacional e entrada em novos mercados. Vamos lançar o banco digital, expandir a atuação na logística para saúde, criar um marketplace próprio e investir em outras frentes estratégicas”.
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Ao longo de quatro anos, os funcionários dos Correios precisaram resistir ao assédio de Bolsonaro e Peixoto para rifar a empresa – Imagem: Redes Sociais/Sintect/RJ, Alan Santos/PR e AFP
Silva afirma que as transformações deveriam ter começado quando a receita dos Correios cresceu durante a pandemia, mas a gestão anterior interrompeu os investimentos: “Agora estamos correndo para recuperar o tempo perdido e colocar os Correios de volta no caminho do crescimento. Trabalhamos para que isso apareça já em 2025”. A empresa, acrescenta seu presidente, “foi duramente sucateada no governo anterior”, numa estratégia para justificar sua privatização. “Entre 2019 e 2022, vimos o fechamento de centenas de agências, cortes de investimentos em tecnologia e segurança, perda de clientes e queda na qualidade dos serviços. Além disso, os trabalhadores sofreram com a retirada de 40 cláusulas do Acordo Coletivo, aumentando a insegurança na categoria.”
O desmonte, segundo Silva, gerou um prejuízo de quase 1 bilhão de reais, agravado por condenações judiciais trabalhistas. Houve ainda defasagem no reajuste tarifário acumulada em 74,12%, entre 2018 e 2023, o que impactou a receita da empresa. Outra contribuição ao déficit dos Correios foi o programa Remessa Controlada, popularmente conhecido como “taxa das blusinhas”, que desaqueceu o comércio eletrônico e provocou uma queda de 2 bilhões de reais na arrecadação do segmento postal. “Estamos virando esta página. O governo Lula tem garantido condições para recuperar a estatal, com investimentos estratégicos para sua modernização, ampliação de receitas e impacto social.”
Formada por aposentados e empregados ativos que ocuparam ou ocupam posições estratégicas e operacionais nos Correios, a Associação dos Profissionais dos Correios (Adcap) enviou uma carta à ministra Dweck, na qual pede “respeito” e afirma que a empresa é de elevado interesse para a população brasileira. O documento afirma que os Correios sustentam uma cadeia de negócios que gera, para cada emprego direto, três empregos indiretos, segundo um estudo da União Postal Universal (UPU), agência das Nações Unidas para o setor. “Assim, se os Correios brasileiros empregam cerca de 90 mil trabalhadores, sua cadeia produtiva oferta mais de 350 mil postos de trabalho.”
A carta afirma que o papel estratégico dos Correios para a integração do território nacional, o desenvolvimento social e econômico, o combate às desigualdades regionais e a segurança nacional saiu vitorioso durante os debates públicos que discutiram o projeto de privatização da empresa: “Vencido esse período, surge o desafio de avaliar os rumos que o atual governo e a gestão dos Correios estão dando para essa importante estrutura estatal federal”.
O setor postal perdeu mais de 2 bilhões de reais em 2024 com a “taxa das blusinhas”
Presidente da Adcap, Roberval Borges avalia que orientar o debate sobre a privatização dos Correios única e exclusivamente em razão do desempenho econômico é um erro: “Superávits e déficits são questões circunstanciais e não enfrentam os fundamentos que caracterizam os serviços como públicos e de interesse social”. A sustentabilidade econômica da empresa, diz Borges, decorre do modelo de financiamento de seus serviços, que, no caso do Brasil, é definido pelo chamado subsídio cruzado, sistema pelo qual as regiões de maior poder econômico financiam as áreas mais carentes.
Além do modelo brasileiro, há basicamente outros dois modelos de financiamento postal praticados no mundo: o norte-americano, em que o Tesouro Nacional banca os déficits correntes e de investimentos; e o europeu, em que os operadores privados do segmento de logística fracionada pagam taxa sobre seus faturamentos para constituir um fundo de universalização e financiar a atividade pública postal. “Para o modelo brasileiro funcionar, há necessidade de gestão profissional e qualificada em todos os níveis, desde a administração estratégica até o chão de fábrica, mas isso não ocorre atualmente.”
Borges afirma que o processo de restrição ao investimento e à modernização ocorrido no governo Bolsonaro afetou o desempenho financeiro dos Correios em razão das perdas de produtividade e da falta de oferta de novos produtos e serviços. Ele acrescenta, porém, que não podemos atribuir os atuais déficits exclusivamente à gestão anterior. “Apesar de os Correios possuírem autorização para formar parcerias, inclusive no exterior, passados mais de dois anos do atual governo nenhuma parceria em novos negócios foi implementada nem a atuação internacional, que se constituiu em forte base para o aumento de receitas, ocorreu.”
Secretário-geral da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios, Telégrafos e Similares (Fentect), Emerson Marinho afirma que grande parte do déficit dá-se por conta do sucateamento, mas lembra que Bolsonaro também promoveu um calote no pagamento de dívidas determinado pela Justiça: “No governo anterior, não se pagaram as ações de precatórios e o governo atual decidiu pela sua liberação, o que também impactou significativamente o balanço da empresa”. A direção dos Correios informa que, além dos precatórios, também foram pagos no ano passado 800 mil reais em “remuneração compensatória” a dirigentes da estatal que atuaram no governo Bolsonaro.
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A ministra Esther Dweck critica a metodologia usada pelo Banco Central para estimar o déficit das estatais, desconsiderando os investimentos – Imagem: Joedson Alves/ABR e Vitor Ribeiro/MGI
“O governo anterior tentou destruir os Correios. Quis privatizar a qualquer custo, mas não conseguiu, devido à resistência dos trabalhadores mobilizados em todo o Brasil e dentro do Congresso Nacional”, diz Marinho. O sindicalista avalia que falta ao atual governo uma política de negócios mais incisiva, para buscar novos clientes e ir atrás da construção e consolidação de uma proposta da federação. “Com a criação do marketplace, os Correios disputariam com grandes players nacionais e internacionais, como Mercado Livre, Magalu e Amazon. Seria uma maneira de, devido à capacidade logística e à capilaridade dos Correios, estar em todo território nacional buscando uma recomposição de negócios e receita rápida. Mas, até agora, nem o governo nem a direção da empresa colocaram isso para andar.”
O déficit de 3,2 bilhões de reais reacendeu a chama entre os setores que defendem a privatização dos Correios: “A taxa das blusinhas justifica em parte o mau desempenho, mas o maior problema é que a empresa é inchada e ineficiente. Faz uma entrega boa, mas o serviço está decaindo. Ainda tem de melhorar muito para se tornar uma empresa lucrativa”, disse o economista Alexandre Chaia ao jornal O Globo. A tese é refutada por Marinho: “Os Correios não têm uma estrutura inchada, embora ela precise ser otimizada e mais objetiva com aquilo que se quer. As diretorias são as mesmas do governo anterior, os departamentos são os mesmos e alguns foram até extintos”.
O secretário-geral da Fentect diz que as críticas por ineficiência “buscam justificar o injustificável”, que é tentar trazer de volta o debate sobre a privatização. “O que é preciso para que os Correios voltem a ser uma empresa que não só dê lucro, mas também continue garantindo a qualidade do serviço à população, é uma melhor estratégia de otimização dos seus recursos de negócio.”
Os Correios têm atualmente 85 mil funcionários contratados via CLT, uma frota com 23 mil veículos, 10 linhas de transporte aéreo de carga, 8 mil unidades operacionais e mais de 10 mil agências espalhadas por todo o Brasil. A empresa é responsável por operações como a entrega de urnas eletrônicas, medicamentos, fraldas, leite em pó e provas de concursos públicos. Após a catástrofe ambiental que vitimou o Rio Grande do Sul em maio do ano passado, a estatal foi responsável pela entrega de 30 mil toneladas de donativos em todo o estado. “Os Correios ocupam um posto estratégico enquanto empresa pública, posição confirmada pelo presidente Lula em seu primeiro dia de governo ao retirar a estatal da lista de privatizações”, ressalta Fabiano Silva.
A empresa tem planos de lançar um banco digital e seu próprio marketplace
Manter essa posição após o governo Bolsonaro, acrescenta o presidente dos Correios, demanda esforço: “Estamos investindo fortemente em infraestrutura, segurança, renovação da frota e tecnologia, para consolidar a empresa como o principal provedor logístico para o setor público e privado. Em dois anos, já aplicamos mais de 2 bilhões de reais em melhorias”. Silva garante que os resultados já começaram a aparecer: “Recuperamos contratos com grandes clientes do comércio eletrônico, ampliamos nossa presença na logística de governo e seguimos avançando para tornar os Correios cada vez mais sustentáveis”.
Silva ressalta que a empresa não é dependente de recursos do Tesouro Nacional e tem suas operações custeadas por receita própria. Ele reconhece que medidas para o aumento da arrecadação, como a taxa das blusinhas, atrapalharam, mas observa que os Correios têm de dar sua cota de sacrifício para o sucesso do governo. “As mudanças nas remessas internacionais fazem parte de um processo natural de reacomodação do mercado, impulsionado por regras mais claras de transparência na importação. Todo o setor passou por ajustes e os Correios também se adaptaram para seguirmos competitivos.”
Além dos Correios, integram a lista de empresas estatais deficitárias, em 2024, a Infraero, a Casa da Moeda e o Serpro, entre outras. A ministra Esther Dweck afirma que não existe rombo: “Essas empresas estão gastando o dinheiro que têm em caixa e aumentaram seus investimentos. Foi um aumento de 44% sobre 2023 e de quase 100% sobre 2022”. Ela acrescenta que as estatais devem ser avaliadas pelo resultado de suas contabilidades empresariais: “Aí se consideram a realização do investimento e seu tempo de amortização. Ele não entra como despesa cheia”. Dweck diz que “a metodologia do Banco Central não é a mais adequada para compreender as estatais porque “é apurada mensalmente e leva em conta apenas as despesas e receitas daquele ano”.
A mesma linha foi seguida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad: “Não é verdade que haja um rombo. Às vezes, a contabilidade das estatais não é a mesma da contabilidade pública. Então, quando você faz investimento, às vezes isso aparece como déficit, mas não é”. Na semana passada, Lula reuniu-se com os ministros e com os presidentes de Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco do Nordeste e Banco da Amazônia, ocasião em que foi apresentado pelas instituições um panorama dos resultados das linhas de financiamento e de crédito público. “O presidente Lula está muito preocupado e prestando muita atenção nas estatais”, disse a ministra da Gestão ao final da reunião.
Roberval Borges lembra que a prestação dos Correios como serviço público é definida pela Constituição Federal: “O Supremo Tribunal Federal por diversas oportunidades reafirmou que os serviços postais são públicos e de interesse social. Assim está definida, organizada e delimitada a atuação dos Correios”. Ele reafirma a função primordial da empresa: “Os Correios atuam em diversos fatores de ordem estratégica nacional, como, por exemplo, a integração do território, ao garantir a todos os brasileiros, em especial àqueles que vivem nas cidades mais longínquas, a possibilidade de enviar e receber comunicação, bens e serviços”. Além disso, diz o presidente da Adcap, a manutenção do serviço postal como público garante que o envio de objetos proibidos como drogas, animais silvestres, obras de arte sacra e outros não ocorra no território nacional, em razão da adoção de sistemas de segurança com raios X e espectrômetros de massa. “Só um serviço estatal pode dar conta disso”, destaca. •
Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Atrás do prejuízo’