Para alguém que completa 80 anos não faltam histórias pessoais para contar. Otávio Augusto, no entanto, não parece instigado a relatar nenhuma delas. “Sou a pior pessoa para falar de mim. Acho muito presunçoso”, diz o ator, por telefone, a CartaCapital. Mais interessante, para ele, é lembrar dos amigos que o ajudaram a se tornar quem é – alguns dos quais estiveram, inclusive, na festa-surpresa preparada por sua mulher, Cristina Mullins, para festejar a data redonda, comemorada em 30 de janeiro.

Quando fala deles, a voz soa animada: “Trabalhei com pessoas das mais importantes e que me deram caminhos maravilhosos na arte dramática.” São nomes como José Celso Martinez Corrêa, Cacilda Becker, Rogério Fróes, Fernanda Montenegro e Tony Ramos, com os quais cruzou ao longo de mais de 60 anos de carreira no rádio, no teatro, no cinema e na televisão.

Cada encontro ajudou a moldar a trajetória que se encaixa perfeitamente na definição de “ator por acaso”. Nascido em São Manuel, no interior paulista, ­Augusto mudou-se para São Paulo aos 15 anos. Na cidade, começou a trabalhar numa seguradora e passou a fazer bicos como dublador. Logo ganhou espaço em radionovela, e chegou a dividir os microfones da Rádio Record com o sambista Adoniran Barbosa. Quando deu por si, estava no circuito de teatro amador.

A profissionalização veio em 1966, em uma montagem do Teatro Oficina para Os Inimigos, de Gorki. Com o grupo, encenou clássicos de Brecht e, em 1968, participou da antológica montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, dirigida por Corrêa. Em paralelo, integrou elencos no Teatro de Arena e outras produções da cena paulistana. “Minha vida foi de mão em mão”, resume.

Em 1970, viajou ao Rio de Janeiro para uma turnê de Os Rapazes da Banda, mas, por conta da temática abertamente gay, a peça foi censurada. Para se livrar da frustração, decidiu transformar a cidade em lar. Hoje, não se considera nem paulista nem carioca. “Sou cidadão do mundo. Só ficava chateado quando não transmitiam os jogos do Botafogo em São Paulo e os do Palmeiras no Rio”, brinca.

Na Cidade Maravilhosa, viu ­abrirem-se­ de vez as portas da televisão. Embora tivesse feito pontas em novelas na Record, na Excelsior e na Tupi, foi ao chegar à Globo que se transformou em uma das figuras mais populares da teledramaturgia brasileira. Até hoje o ator tem um contrato fixo com a empresa – algo, como se sabe, cada vez mais raro.

Desde seu primeiro papel grande, ao lado de Tarcísio Meira, em 1975, na novela Escalada, Augusto destacou-se com o timing certeiro para o humor e a versatilidade para o drama, responsáveis por uma coleção de personagens marcantes.

“Me sinto meio perdido, mas continuo querendo evoluir. Sou totalmente otimista. Pessimista é quem não tem visão crítica e não tenta mudar”

Entre eles, estão Marcolino Pitombo, de Tieta (1989), e Matoso, de Vamp (1991), o vampiro com um canino só. A ideia inusitada partiu do próprio artista, que naquele ano conquistou o prêmio de melhor ator da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), superando o protagonista encarnado por Ney Latorraca.

Após a chegada ao Rio, entre uma novela e outra, ele também se dedicou intensamente ao cinema, tendo trabalhado com diretores como Hugo Carvana, ­Walter Hugo Khouri, Ugo Giorgetti e Walter Salles, para citar alguns.

Ao teatro sempre permaneceu fiel. Sua empreitada mais recente é A Tropa, de Gustavo Pinheiro, na qual vive o acerto de contas de um militar doente com os quatro filhos. O texto estreou em 2016 e, desde então, segue em temporada Brasil afora. No momento, estuda encenar algo inspirado em Carlos Heitor Cony.

Em todas essas experiências, Augusto aprendeu a força do coletivo e colocou a lição em prática nos dois mandatos como presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (Sated) do Rio de Janeiro, nos anos 1970 e 1980.

“Nos anos 1960, a tomada do poder pela direita fez com que nos víssemos obrigados a nos organizar melhor, ampliando nossas reivindicações e convencendo as empresas da nossa importância”, diz. “Mas essa luta continua com a questão dos direitos conexos.”

Ele refere-se à busca dos atores por remuneração pela reexibição de obras em diferentes meios, uma discussão posta em pauta com o streaming. “Temos uma aposentadoria ridícula, e essa é uma opção para uma sobrevivência futura. Se não brigarmos por nós, ninguém brigará”, afirma, mostrando manter intacto o espírito nutrido nos anos à frente do sindicato.

Ao falar dos amigos e do ofício, ­Otávio Augusto busca ressaltar a qualidade e o profissionalismo das artes no ­País – algo neste momento evidenciado pela conquista do Globo de Ouro por Fernanda Torres.

Após exaltar a premiação e a indicação da atriz ao Oscar, cuja cerimônia acontece no domingo 2, ele se lembra de “Fernandinha”, adolescente, vendo os pais fazerem leituras de peças com ele na sala de casa, noite adentro. “Ela levou o nome do Brasil a um extremo que há muito não se via. Devemos comemorar esse momento e aproveitar para levar nossa luta para a frente”, diz.

Augusto sabe, por outro lado, que os tempos são outros e desconfia do estímulo excessivo ao autoempreendedorismo. “As coisas estão de tal maneira que não se sabe mais como agir, a não ser individualmente. Isso não é bom”, diz.

Apesar de não negar certo desânimo diante desse estado de coisas, não se vê por baixo. “Hoje me sinto meio perdido, mas continuo querendo evoluir”, diz. “Sou totalmente otimista. Pessimista é quem não tem visão crítica e não tenta mudar. Nós temos essa obrigação. Só não vamos mudar isso sozinhos.” •

Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ator por acaso, e por vocação’

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Last Update: 26/02/2025