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Foi [nome do pai] a ideia de encher sacos de milho com a palha de arroz que sobrava na fábrica vizinha ao acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em que era assentado. Na falta de colchões adequados para o salto em altura, aquilo serviria como um quebra galho para a garotada não se quebrar.
Queria que o assentamento fosse mais do que um conjunto de sítios onde se plantava algodão e se criava gado, mas um local de aprendizado e de formação de atletas. Conseguiu.
Na sexta-feira (2), a filha dele, Valdileia Martins, a primeira a testar a eficiência dos colchões de palha de arroz, chegou a uma final olímpica, enchendo de orgulho o assentamento Pontal do Tigre e a cidade de Querência do Norte, no noroeste do Paraná.
[nome do pai] não pôde ver o momento pelo qual tanto sonhou. Ele faleceu na segunda-feira (29), na terra distribuída a ele pela reforma agrária em 1998. Um enfarte fulminante que só foi informado a Valdileia na manhã seguinte, durante um dos primeiros treinos em Paris.“Eu comecei a chorar, não perguntei à minha irmã como tinha acontecido. Parei de chorar, me recompus e voltei a treinar. O Nei [Neilton Moura, que a treina em Paris] nem percebeu que eu estava diferente. Só quando minha outra irmã me ligou para perguntar se eu estava sabendo é que o Nei me viu chorando e perguntou o que tinha acontecido”, contou Valdileia ao UOL Esporte.
A atleta teve que tomar a decisão mais importante da vida. Depois de mais de 20 anos de carreira, 35 de vida, estava pela primeira vez em uma edição das Olimpíadas. Mas já não teria mais graça sem seu incentivador, pois precisava dar apoio à família e estar próxima à mãe e aos sete irmãos.
“Quero que você fique e compete, que era o que seu pai queria. Ele estava feliz e orgulhoso de você”, disse a mãe à filha. Leia, como é chamada pela família, tinha planos de voltar de Paris após os Jogos, tirar férias “em casa”, no sítio, e comemorar com os pais as muitas conquistas da temporada.
Mas viu o pai pela última vez no caixão, em uma ligação de vídeo. Tomou coragem e foi ser finalista olímpica.
Uma história não contada
Leia é uma pessoa tímida. Foge de entrevistas e não costuma se abrir. Nenhum dos dois treinadores que trabalharam com ela nos últimos 16 anos sabiam até ontem de sua origem em um acampamento do MST.
Reflexo de um preconceito enraizado na sociedade brasileira. “Na escola tinha muito preconceito: ‘ela é do MST, ela é sem-terra’. Então sempre teve preconceito, as pessoas dão risada. A gente não fica falando muito. As pessoas só sabem que eu nasci no sítio, que cresci no sítio”, explica Valdileia, cuja família já era arrendatária daquele pedaço de terra antes mesmo do assentamento.
Ao nunca contar para o treinador a sua história, não permitiu a Dino descobrir que faz parte da história dela desde sempre. Foram suas aulas como professor de atletismo na Unesp que influenciaram Flávio Rodrigues dos Santos a ensinar a modalidade na escola próxima ao assentamento, onde Valdileia estudava. Esse reencontro só aconteceu ontem (2), após o UOL notar a coincidência.
Foi Dino Cintra do fim dos anos 1990 quem plantou os frutos que o Dino Cintra de 2024 está colhendo: se tornar um treinador finalista olímpico.
“Eu não era uma pessoa que tinha domínio nos esportes coletivos, então a matéria que eu mais gostava era atletismo. O que eu passei para Valdileia aprendi com o Dino. Ele faz parte da história dela desde o início. Se eu não tivesse um professor competente como ele, não teria a coragem e nem capacidade de dar início a esse trabalho”, diz Flávio.
Do assentamento a Paris
Flávio começou a colocar em prática o que aprendeu com Dino no Centrão, a escola de Querência do Norte em que estudavam os assentados. O município é a “capital do arroz” do Paraná e o assentamento do MST chegou a ser referência na plantação de arroz ali.
Foi na palha do arroz que Valdileia começou a carreira, saltando sobre os ‘colchões’ desenvolvidos pelo pai. O sarrafo, improvisado, era feito com varas de pescar, como contam os recortes de jornal que Flávio posta em suas redes sociais, como forma de manter viva a história do atletismo no assentamento. Por serem finas e leves, essas varas, de bambu, eram ideias para substituir o sarrafo.
Apesar do colchão, continuava sendo mais seguro cair de pé, então Leia saltava estilo ‘tesoura’, de frente para o sarrafo, passando uma perna e depois a outra. Mesmo assim, ganhou os Jogos Escolares do Paraná, em 2003, o que fez o governo do Estado doar equipamentos para o assentamento. No colchão adequado, passou a fazer o “flop”, o tradicional salto de costas.
O pai reconheceu a aptidão da filha para a prova, e que, em Querência do Norte, na divisa com o Mato Grosso do Sul, no ‘Pantanal Paranaense’, ela não chegaria longe. Daí a ideia de transferi-la para a Escola de Agroecologia do MST em Maringá (PR), cidade não tão distante dali que já tinha tradição no atletismo, uma estrutura adequada para formar uma atleta e treinadores de ponta.
Logo ela despontou no alto rendimento. Foi vice-campeã brasileira sub-20, aos 17 anos, prata no Sul-Americano da mesma categoria, aos 18, sendo beneficiada já na primeira lista do Bolsa Atleta — o que a ajuda a viver de atletismo —, com fases boas e ruins, há duas décadas.
Ouviu dos próprios treinadores que tinha futuro, e precisava ser em São Paulo. Na cidade grande, treinou primeiro com Nelio Moura e Tânia Moura, no Projeto Futuro, para depois se juntar, aos 20 anos, ao time BM&F, de São Caetano do Sul (SP), dos melhores do país, treinada por José Antônio Rabaça.
Mas, já no adulto, viu a carreira bater no teto. Saltou o máximo de 1,83m, em 2010, depois em 2011, 2012, 2013… Até 2022 nunca havia ido acima de 1,88m. Era o suficiente para ganhar o Troféu Brasil, medalhar em Campeonatos Sul-Americanos, disputar os Jogos Pan-Americanos, mas não para dar o passo a mais: chegar aos Jogos Olímpicos e ser a melhor da América do Sul.
No meio do caminho, duas cirurgias no joelho, que não a impediram de continuar. “Meu pai começou a perguntar se não era melhor eu parar. Foi uma cirurgia perto da outra, e quem está perto vê como é doloroso. Meu pai e minha mãe não entendiam muito que faz parte do processo. Ele achou que eu tinha que parar, que não ia mais vingar”, lembra Leia, que, no atletismo, é chamada de Val.
Já treinando com Dino, depois de 2018, chorava de dor após os treinos. Chegou a dizer ao técnico que ia parar, mas recebeu incentivo. “Ele falou que se eu não confiava em mim, que pelo menos eu desse a ele a chance de me mostrar que eu era capaz”, conta.
A virada de chave, porém, veio recentemente. “Em 2023, ela estava muito bem e a gente estava esperando saltar 1,90m e vencer o Pan. Após esse resultado decepcionante, sentamos e conversamos sobre o que precisávamos fazer para que isso não acontecesse novamente”, conta Dino, que é pago pela Orcampi. Além disso, a fisioterapeuta é funcionária da CBAt, mas essa era toda a estrutura que tinha.
Valdileia foi atrás de nutricionista e psicóloga, que passou a pagar do bolso. Começou a fazer suplementação e reduziu em 4 quilos o peso corporal e a evolução psicológica foi enorme, segundo Dino. “Hoje o nível de confiança dela é altíssimo.”
Focada, viu os resultados melhorarem. Passou a ser um reloginho, saltando sempre acima de 1,85m na temporada, e chegou a 1,90m em um torneio em abril, melhor resultado de uma brasileira desde 1992. Estava pronta para 1,92m no Troféu Brasil, mas o baixo nível da prova