A Universidade de Brasília tem marcado posição contra ataques à educação pública no País. Há 180 dias, a instituição mantém afastado de suas atividades acadêmicas o aluno Wilker Leão, conhecido influenciador da extrema-direita que engrossa o coro dos que acusam universidades de promover uma “doutrinação ideológica”.

O youtuber é acusado de gravar conteúdos das aulas e publicá-los nas redes sociais, a fim de estimular sua base de quase um milhão de seguidores. Embora negue as imputações, sempre fez questão de explicitar suas intenções na universidade.

“Estou cursando História na UnB (segundo semestre), justamente por ser um dos cursos que a esquerda mais dominou com suas narrativas ideológicas e doutrinárias. Combater isso é o meu principal objetivo dentro da universidade federal”, já escreveu Wilker em seu perfil.

Parte do processo, em tramitação há quase um ano por meio de um processo disciplinar, foi acompanhado de perto por Rozana Reigota Naves, que assumiu a reitoria da UnB em novembro de 2024. Em dezembro, o estudante foi suspenso por 60 dias pela primeira vez, medida renovada em março e em maio.

A punição não está entre as premissas da brasiliense, doutora em Linguística e segunda mulher a se tornar reitora da universidade. O contexto, porém, a levou a manter as penas impostas ao estudante.

“Defendemos, evidentemente, uma educação libertadora, antirracista. Mas o que vemos é um ataque constante às instituições, sejam elas educacionais, de justiça ou da saúde”, afirma. “É esse o enfrentamento que nós, enquanto sociedade, precisamos fazer, e a universidade não está fora disso.”

Em entrevista a CartaCapital, a reitora falou sobre as estratégias adotadas para combater as fake news e como as universidades ainda carecem de mais segurança institucional para contribuir com o desenvolvimento científico e tecnológico do País.

Leia os destaques:

CartaCapital: Como foi tomar a decisão de afastar Wilker Leão?

Rozana Naves: Quando assumi a reitoria, esse caso já estava em andamento há quase um ano, com um processo disciplinar instaurado.

O processo disciplinar segue um rito sigiloso e transcorre na universidade segundo as regras estabelecidas pelas normativas internas. Claro que a defesa é por uma educação libertadora, antirracista. A universidade está inserida nesse contexto de formação de profissionais críticos, que possam atuar na sociedade com um compromisso ético, de excelência. Agora, estamos diante de um movimento muito potencializado pelo governo anterior, de desconstrução do ambiente acadêmico, de questionamento à autonomia universitária e de incentivo aos discursos de ódio contra as instituições de educação superior, desqualificando o trabalho que desenvolvemos.

É um ataque constante às instituições, sejam elas educacionais, de justiça, ou da saúde. É esse o enfrentamento que nós, enquanto sociedade, precisamos fazer, e a universidade não está fora disso.

O que fizemos e continuamos fazendo é assegurar o direito dos professores à liberdade de cátedra, a não ter suas imagens violadas por meio de uma propagação não autorizada na internet, e também o direito dos demais estudantes de participar das aulas que estavam suspensas no semestre passado.

CC: Qual o limite desse afastamento e quais outras medidas podem ser tomadas?

RN: Estamos com um processo disciplinar em andamento. Em geral, a depender da gravidade dos fatos e de como as oitivas ocorrem, eles acabam se estendendo um pouco mais.

Nesse caso, a característica específica é a recorrência. Ou seja, mesmo no âmbito de um processo disciplinar, a situação de exposição dos professores, publicação de novos vídeos e citação da comunidade segue ocorrendo. Então, uma vez que o fato gerador da suspensão não cessa, é complicado pensarmos em não estender a suspensão. As novas suspensões são decorrentes da reiteração das práticas pelo estudante.

Em relação às medidas, o nosso Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão aprovou uma regulamentação que visa a proteger os direitos autorais, de imagem, e estabelece regras para a gravação e a divulgação de atividades acadêmicas intelectuais no âmbito da universidade.

A regra estabelece que as gravações de aulas devem ser para uso pessoal e estritamente educacional, sendo vedadas a exploração econômica, a monetização ou a publicação com finalidade lucrativa.

Esperamos que com essa nova regulamentação não ocorram novas situações de violação desses direitos de imagem, voz e liberdade de cátedra.

CC: Wilker tem alegado ser vítima de perseguição. O episódio pode dar munição para que a extrema-direita acuse a universidade de intolerância?

RN: A universidade, enquanto instituição pública, tem de seguir rigorosamente os valores expressos na Constituição e, sobretudo, os princípios democráticos que nos regem.

Prezamos por uma dinâmica interna democrática, fazemos debates conceituais, políticos e ideológicos com um nível de interação e de respeito às liberdades democráticas que constituem a nossa própria gênese.

Elegemos desde o reitor até o representante dos centros acadêmicos e, em cada uma dessas instâncias, é o exercício democrático que está em jogo. Portanto, não há espaço para se falar em perseguição ou viés ideológico, porque todas as correntes estão contempladas.

A Universidade de Brasília tem uma comunidade de mais de 60 mil pessoas. Seria impensável que entre esse público tivéssemos 100% de pessoas vinculadas à mesma ideologia. É por aí que precisamos seguir, em respeito à Constituição, às liberdades democráticas definidas conceitualmente e ao que regem o nosso estatuto e o nosso regimento.

A reitora da Universidade de Brasília, Rozana Reigota Naves. Créditos: Divulgação UNB

 

CC: Como avalia a resposta institucional aos ataques às universidades no Brasil? A reação ainda fica no campo individual, de cada instituição?

RN: De fato, o que a UNB tem passado não é uma situação isolada, tampouco algo peculiar ao Brasil. Temos acompanhado o que acontece com as universidades dos Estados Unidos e da Argentina. O ataque às universidades é um projeto da extrema-direita, e essas instituições incomodam pelo próprio histórico de resistência aos conservadorismos e autoritarismos.

Considerando a institucionalidade, vejo um amadurecimento em termos de poder público. Uma compreensão mais clara no País de que esses ataques às universidades são estruturais e perpassam as instituições brasileiras, alcançando outros países. Vejo que produzimos essa consciência, e com isso temos dialogado mais com as instituições do poder público.

Do ponto de vista da sociedade, vejo que há uma sensibilização forte, mas ainda precisamos avançar muito para demonstrar com clareza a potência das universidades federais no Brasil e o quanto elas contribuem para o desenvolvimento científico e tecnológico.

Na pandemia, vários estudos demonstraram que as universidades produzem mais de 90% das pesquisas científicas do País. Então, demonstrar à sociedade que essa é a nossa missão precípua, e que é a partir daí que a nossa contribuição se dá para o o desenvolvimento da nação, é um desafio que se coloca para todos nós.

CC: O governo federal chegou a bloquear 300 milhões de reais do orçamento das universidades federais. Posteriormente, o montante foi liberado e acrescido de 400 milhões para recomposição. Como foi esse processo para a UnB e como avalia a medida?

RN: O compromisso feito pelo governo federal junto aos reitores foi cumprido com o novo decreto. O que distingue as universidades de outros órgãos de governo é que o nosso funcionamento requer um planejamento mensal da ordem de 1/12 do orçamento. Então, qualquer contingenciamento abaixo disso compromete o nosso funcionamento. Na UnB, não chegamos a adotar medidas restritivas, mas se o contingenciamento permanecesse, certamente teríamos despesas da nossa rotina afetadas.

De modo geral, é lamentável que educação e saúde acabem entrando nessas medidas de contingenciamento, porque são direitos fundamentais, e sabemos que a base das mudanças sociais de que o País tanto precisa está na educação.

O que pleiteamos e discutimos fortemente com os poderes Executivo e Legislativo é a possibilidade de termos uma legislação específica que assegure os recursos de funcionamento das instituições federais de educação superior, o que inclui também os institutos federais.

Entendemos ser imprescindível, nesse contexto, uma legislação própria que trate das regras de financiamento da educação superior no Brasil. Isso garantiria para nós uma possibilidade mais estável de planejamento, a médio e longo prazos, porque os resultados na educação são medidos por ciclos — um curso de graduação dura quatro anos.

Estabilidade no financiamento da educação superior é fundamental para alcançarmos resultados qualificados e uma transformação social efetiva.

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Last Update: 11/06/2025