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Trecho da minissérie Adolescência

Anderson Pires*

Assisti a minissérie Adolescência. E agora? Imagino que milhões de pais por todo mundo estejam fazendo a mesma indagação. A série mistura um monte de questões sobre a relação com os filhos, perigos aos quais estão submetidos e qual seria a melhor forma de educar. Tenho receio das leituras que serão feitas e das receitas utilizadas na tentativa de evitar que algo tão extremo aconteça como na história. Um jovem de treze anos comete assassinato contra uma colega de colégio.

Antes, li algumas matérias e vi uma entrevista de um dos criadores. Após assistir, tenho certeza que muita gente não entendeu. Acentuaram alguns discursos atuais, como a série ser muito marcada pelo ódio às mulheres e dos perigos existentes na internet, como repetem hoje: um jovem trancado dentro de um quarto corre mais riscos que andando na rua. Essas questões estão presentes, mas não é o que considero mais importante. Definitivamente, não é sobre isso que a série trata.

A principal questão gira em torno de expectativas e projeções. Geralmente, essa é a base das relações entre pais e filhos. Nessa relação estão contidos todos os traumas que podem abrir espaços aos perigos diversos que estão hoje na internet, mas que também sempre estiveram nas ruas, nos colégios e nos ambientes de convivência, sejam presenciais ou virtuais.

Nesse sentido cabem expectativas da carreira profissional até a sexualidade, projeções que, também, estão recheadas de medos e preconceitos. Não sei se sou um pai excelente, faço o que sinto e tento evitar repetir erros. Na verdade passarei a vida toda sem saber, porque é uma função que nos cobram a infalibilidade eterna. Mas de uma coisa tenho certeza, não me falta vontade e prazer em ser pai.

Dentro dessa lógica, tento não criar expectativas para que meu filho tenha que suprir. Duas situações nesses dezesseseis anos de convivência com Bento ilustram bem. Ele sabe que tem responsabilidades, as convenções obrigam que tenhamos, até para depois realizar os nossos sonhos, mas diante das cobranças que eu e a mãe dele fazemos, sempre digo: filho, você tem algo inestimável, a liberdade e nosso respeito para sonhar.

Tão pouca gente desfruta disso, as imposições da relação expectativa/projeção, aprisionam, reprimem os sonhos. E a sociedade é baseada nisso. Porque é inconcebível que tenha mais gente querendo ser médico do que músico, se a segunda opção mexe com sentidos tão prazerosos. Algumas pessoas dirão, mas dá pra ser os dois. Sim, dá, conheço até quem goste de ser os dois, mas, geralmente, o que temos é uma hierarquização, que coloca os medos e as privações como parâmetro da melhor (ou primeira) escolha.

A outra situação foi numa conversa recente que tivemos, quando ele me perguntou o que eu esperava quando lhe dei sua primeira guitarra. Disse que não esperava nada. Ele indagou: como não? Disse que realmente não esperava nada: já imaginou se tudo que fizesse para você esperasse algum resultado que me satisfizesse, iria acabar lhe tirando o direito de experimentar?

Meu filho é músico, talvez seja durante toda vida, é algo que lhe enche de felicidade, consequentemente a mim também. Não é uma escolha comum, basta ver que em toda esquina tem uma faculdade de medicina ou direito e pouquíssimas escolas de música. O que está por trás disso é um modelo de sociedade, que impõe as escolhas e que impactam na relação expectativa/projeção que existe entre pais e filhos e na sociedade.

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Porque na maioria das vezes, as expectativas dos pais estão vinculadas as convenções criadas pela sociedade e o valor de mercado que é dado a elas. Logo, ser músico é um valor pessoal, algo que preenche, é a realização de um sonho. Como se diz no popular, não tem preço. Porém, é secundarizado, oprimido. Visto que, aparentemente, é uma atividade arriscada e incerta num mundo de tanta desigualdade e, cada vez mais, desprovido de sonhos.

Pois é, pode parecer uma mera hipótese levantada, de que a desigualdade interfere diretamente nas relações entre pais e filhos, mas não é. O que temos é um estado de completa normalização, que com o passar do tempo tem se intensificado em decorrência do aumento da desigualdade, da propagação de uma ideologia positivista, que defende a meritocracia como uma consequência dos esforços, desconsiderando que as oportunidades não são iguais, nem as pessoas são iguais.

Isso é constatável. Não é mero achismo. Vou utilizar como o exemplo uma situação que tem a ver com o interesse do meu filho pela música. Seu estilo preferido atualmente é o heavy metal, toca guitarra como poucos, tem habilidade e talento para fazer disso sua profissão. Mas no Brasil as possibilidades são restritas e muitas pessoas talentosas como ele são obrigadas a buscar outras formas de subsistir que pareçam mais seguras que tocar metal. Abandonam seus sonhos pela incerteza de condições dignas de sobrevivência e pela velha relação com os pais de expectativa/projeção.

Ao contrário disso, num país como a Finlândia, com uma população de menos de seis milhões de habitantes existem mais bandas de heavy metal que no Brasil com seus duzentos milhões de habitantes. O que explica isso? Na Finlândia se permite experimentar os sonhos. Por mais pobre que a pessoa seja tem garantida uma vida digna. Isso se reflete nas relações, pois pais e filhos trocam mais afetos que cobranças. Não é por acaso que sucessivamente é eleito o país com o maior nível de felicidade no mundo.

A felicidade está diretamente ligada a redução da desigualdade. As relações serão cada vez mais frágeis se a lógica concorrencial do capitalismo continuar a se intensificar e seguir condenando tantos a pobreza e exclusão. A série Adolescência não aborda isso de forma explícita, mas expectativas e projeções estão o tempo todo no roteiro. Para completar o cenário perfeito para o adoecimento, existe um mundo destrutivo amplificado pela internet, que é onde jovens vivem e que, muitas vezes, é minimizado pelos pais. Por outro lado, os pais acreditam fazer o certo quando buscam melhores condições financeiras para seus filhos e projetam neles suas expectativas, mas os deixam culpados pelos seus sonhos e lhes condenam a busca pela aceitação num ambiente tão hostil.

Quem dera que o mundo permita que os sonhos tenham valor e não preço. Seria bom se vivêssemos numa grande Finlândia, com menos desigualdade, mais empatia e a liberdade para experimentar. Por coincidência, moramos na Rua Golfo de Finlândia. Em nosso microcosmo é permitido sonhar.

*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.

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Last Update: 26/03/2025