As turvas águas do Rio da Prata

por Bruno Fabricio Alcebino da Silva

A ilusão da “serra que emanava prata” tornou-se realidade em 1545, com o descobrimento de Potosí, mas antes morreram, vencidos pela fome e pela doença ou varados a flechadas pelos indígenas, muitos dos expedicionários que tentaram, infrutiferamente, alcançar o manancial da prata, subindo o rio Paraná.
Eduardo Galeano em
As Veias Abertas da América Latina

“É melhor transigir do que ir à guerra, pois o recurso à guerra é sempre desgraçado”.
Barão do Rio Branco em
O Brasil no Rio da Prata (1822-1994)

Caminhando à margem do Prata, às vezes parecia que ouvia sussurros, vozes antigas que falavam de pactos, traições e promessas que ainda se agitam sob a superfície turva. As águas do Rio da Prata serviram, por quase dois séculos, como palco de complexas e duradouras disputas geopolíticas no subcontinente sulamericano. Embora as dimensões físicas do estuário, formado pela confluência dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai e com cerca de 290 quilômetros de extensão por 220 de largura, não sejam o foco principal das desavenças, suas dimensões geopolíticas constituem a verdadeira medida de sua imensidão histórica.

Desde o período colonial, esse “território líquido” foi uma fronteira disputada, inicialmente entre Portugal e Espanha e, após as independências da Argentina (1816), Brasil (1822), Uruguai (1825) e Paraguai (1811), tornou-se um palco crucial para a afirmação das soberanias nacionais, sob a atenta influência britânica. A Argentina reivindicou controle total sobre suas águas, ameaçando reduzir o Uruguai a uma “nação de costa seca”, sem jurisdição fluvial, um tema central da política externa platina no século XIX. Em resposta, a diplomacia uruguaia defendeu firmemente o princípio da “linha média” para assegurar sua viabilidade enquanto Estado soberano. Para o Império do Brasil, a questão era igualmente vital: a livre navegação pelo estuário e seus afluentes era condição inegociável para a comunicação com a distante província de Mato Grosso. Essa complexa rede de interesses, que frequentemente gerou tensões e conflitos, começou a ser desatada por meio da diplomacia, com marcos como o Protocolo Ramírez-Sáenz Peña (1910), que garantiu direitos iguais aos Estados ribeirinhos, e o Tratado del Río de la Plata y su Frente Marítimo (1973), que estabeleceu um estatuto para o uso compartilhado das águas.

Para além de sua centralidade estratégica, o estuário é também um ator central na produção cultural da região rioplatense, tornando-se paisagem literária e cinematográfica, como se vê desde Viaje al Río de la Plata, de Ulrich Schmídel (1903), o cronista que relata a conquista e a colonização do Rio da Prata no século XVI, até obras mais recentes, como A Uruguaia (2016) de Pedro Mairal e Viaje al Río de la Plata (2024) de Carlos María Domínguez, que revisita o imaginário do estuário a partir de uma perspectiva contemporânea e reflexiva.

 Neste cenário de ambições, desconfianças e alianças voláteis, a obra O Brasil no Rio da Prata (1822-1994), do historiador Francisco Doratioto, emerge como uma narrativa-eixo indispensável para compreender a longa e sinuosa trajetória que transformou a rivalidade em integração. De forma magistral, Doratioto traça a evolução da política externa brasileira na região, focando na sua relação com Argentina, Uruguai e Paraguai. Contudo, uma análise verdadeiramente aprofundada de sua obra ganha contornos ainda mais nítidos quando articulada às perspectivas complementares de outros estudiosos, como os professores da Universidad de la República, em Montevidéu, Isabel Clemente[2] e Romeo Pérez Antón[3], que oferecem um contraponto uruguaio e uma lente analítica regional sobre os mesmos processos

O século XIX, conforme detalhado por Doratioto, foi a era da contenção e da busca pela hegemonia. A diplomacia do Império brasileiro, consolidada a partir da década de 1840, tinha como objetivos primordiais a definição de fronteiras sob o princípio do uti possidetis[4] e, fundamentalmente, a contenção da influência de Buenos Aires, personificada na figura de Juan Manuel de Rosas. O autor demonstra como a defesa das independências do Uruguai e do Paraguai não era um ato de altruísmo, mas uma estratégia vital para garantir a livre navegação dos rios da bacia e evitar a formação de uma poderosa república platina que ameaçasse a integridade territorial e o próprio sistema monárquico brasileiro.

Essa visão, centrada nos imperativos brasileiros, é brilhantemente enriquecida pela análise de Isabel Clemente sobre a política externa uruguaia. Clemente descreve um Estado nascente marcado pela “debilidade externa”, caracterizado em um relatório diplomático brasileiro da época como “pequeno, fraco e pobre”. A instabilidade uruguaia, que Doratioto aponta como um pretexto para a intervenção brasileira, é revelada por Clemente como uma luta desesperada pela sobrevivência, evidenciada pelos reiterados pedidos de protetorado à Grã-Bretanha para preservar a independência frente aos “projetos expansionistas de seus vizinhos”. Os tratados de 1851, que para o Brasil representaram a consolidação de sua influência, são descritos por Clemente como “desiguais”, impondo ao Uruguai uma virtual condição de protetorado. A articulação dessas duas perspectivas oferece um panorama bidimensional: enquanto o Brasil agia por estratégia, o Uruguai reagia por necessidade.

A Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) representa um ponto de inflexão na narrativa de Doratioto, um hiato na lógica da rivalidade Brasil-Argentina, forjando uma aliança circunstancial para conter o Paraguai de Solano López. No entanto, o pós-guerra rapidamente reacendeu as velhas desconfianças, com a disputa diplomática pela influência sobre um Paraguai devastado. É aqui que a contribuição de Romeo Pérez Antón se torna fundamental. Ele propõe uma interpretação mais ampla, vendo os conflitos do período – a luta entre federais e unitários na Argentina, a Guerra Grande no Uruguai e a própria Guerra do Paraguai – não como eventos isolados, mas como manifestações de uma única e prolongada “guerra civil en el seno del Virreinato del Río de la Plata”. Essa lente analítica transcende a diplomacia dos Estados e revela um confronto de “modelos incompatíveis” que atravessava as recém-criadas fronteiras nacionais. A vitória da Tríplice Aliança, nessa ótica, foi também a vitória do modelo unitarista, liberal e agroexportador em toda a região.

No início do século XX, a figura do Barão do Rio Branco domina a análise de Doratioto. O Barão buscou estabelecer uma paz pragmática, baseada na contenção mútua e na liderança discreta do Brasil, embora a hipótese de guerra com a Argentina continuasse a ser um pilar do planejamento militar de ambos os países. Novamente, a perspectiva uruguaia é esclarecedora. Pérez Antón descreve a consolidação da chamada “política de péndulo”, uma estratégia interpartidária que se tornou a principal diretriz da política externa do país. O Uruguai aprendeu a manobrar entre os dois gigantes, utilizando a aproximação com um para contrabalançar a influência do outro, como no Tratado de Limites de 1909 com o Brasil, que gerou grande simpatia popular e colocou a Argentina em uma posição delicada em sua própria disputa fluvial com Montevidéu.

A segunda metade do século XX, segundo Doratioto, foi marcada por um lento e acidentado aprendizado de cooperação. A rivalidade geopolítica atingiu seu ápice moderno na controvérsia sobre a construção da usina hidrelétrica de Itaipu, que para a Argentina representava a materialização do “imperialismo brasileiro” e uma ameaça ao equilíbrio de poder regional. A solução do impasse, com o Acordo Tripartite de 1979, foi o primeiro grande passo para desarmar a lógica do conflito. Este período de reaproximação foi, contudo, antecedido por um sombrio capítulo de cooperação entre as ditaduras militares da região. Unidos pela Doutrina de Segurança Nacional, os regimes do Brasil, Argentina e Uruguai promoveram uma sinistra integração sub-regional focada na coordenação de políticas repressivas, que culminou na infame “Operação Condor”.

Contudo, este alinhamento ideológico não eliminou as profundas rivalidades geopolíticas, como demonstrou a própria disputa por Itaipu, que se desenrolou entre os governos militares. Esta era foi, portanto, marcada por uma mistura paradoxal de colaboração na repressão e desconfiança estratégica contínua, resultando em considerável isolamento internacional para os países do Cone Sul. No entanto, o catalisador definitivo da integração foi, como Doratioto e Pérez Antón concordam, a redemocratização dos anos 1980.

A convergência democrática entre os governos de José Sarney e Raúl Alfonsín criou um clima de confiança mútua que permitiu superar décadas de desconfianças alimentadas pelas ditaduras militares. Como aponta Octavio Amorim Neto, a política externa, embora fortemente influenciada por fatores sistêmicos como as capacidades nacionais, é, em última instância, produto de decisões de líderes e atores políticos. A vontade política de Alfonsín e Sarney, nascida de um alinhamento de valores democráticos, foi o motor que iniciou o desmonte do paradigma da rivalidade. Esse processo culminou com a assinatura do Tratado de Assunção em 1991, criando o Mercosul (formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e institucionalizando a passagem da contenção para a cooperação.

Em suma, O Brasil no Rio da Prata é uma obra fundamental que narra a longa jornada de transformação de um dos mais tensos cenários geopolíticos do mundo. A análise de Francisco Doratioto, robusta e detalhada, oferece a espinha dorsal dessa história. Sua escrita combina rigor historiográfico com clareza narrativa, tornando a leitura acessível mesmo para quem não é especialista. Contudo, é no diálogo com as vozes de Clemente e Pérez Antón que a complexidade da região se revela em sua plenitude. Eles nos lembram que, enquanto o Brasil e a Argentina jogavam seu grande jogo, nações como o Uruguai lutavam para forjar seu próprio destino nas margens turbulentas, e que sob a superfície das disputas entre Estados, corriam as profundas correntes de conflitos ideológicos e culturais. As águas do Rio da Prata, hoje mais calmas, carregam em seu fluxo o legado indelével de uma história de rivalidade superada pela visão de um futuro compartilhado, que hoje, décadas após as últimas propostas de integração regional apresentam fissuras e assimetrias.

Referências Bibliográficas

AMORIM NETO, Octavio. De Dutra a Lula: La conducción y las determinantes de la política exterior brasileña. Rio de Janeiro: EUDEBA, 2013. pp.11-57

CLEMENTE, Isabel. Política exterior de Uruguay, 1830 – 1895. Tendencias, problemas, actores y agenda. Montevideo: Facultad de Ciencias Sociales, Documento de Trabajo Nº 69, 2005.

DORATIOTO, Francisco. O Brasil no Rio da Prata (1822-1994). 2. ed. Brasília: FUNAG, 2014.

GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 1ª edição. L&PM, 2010.

PÉREZ ANTÓN, Romeo. El legado del siglo XIX. In: PÉREZ ANTÓN, Romeo. Política exterior uruguaya: siglo XX. Montevideo: Ediciones de la Plaza. 2011. pp. 7- 38. 


[1] Bruno Fabricio Alcebino da Silva – Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Ciências Econômicas e Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), com período de graduação sanduíche na Universidad de la República, em Montevidéu, Uruguai. Pesquisador do Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

[2] Doutora  em  Estudos  Latino-Americanos  e  Caribenhos  pelo  Institut  of  Latin  American Studies da University of London (Londres, Inglaterra). Professora do Programa de Estudos Internacionais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de la República (Udelar) em Montevidéu, Uruguai.

[3] Doutor em Direito e Ciências Sociais (Universidad de la República, Uruguai). É pesquisador e professor de Ciência Política, com especialização em partidos políticos uruguaios, política externa e teoria política da integração. É professor da Universidad de la República e da Universidade Católica do Uruguai.

[4] Princípio jurídico de direito internacional, consagrado na América Latina no século XIX, segundo o qual as novas nações independentes mantêm as fronteiras administrativas vigentes no período colonial. Na prática, o uti possidetis foi usado para legitimar as fronteiras herdadas da administração colonial espanhola ou portuguesa, buscando evitar disputas territoriais entre os Estados recém-formados.

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Last Update: 06/08/2025