Nem “não é não” nem “só sim é sim”. Os dois slogans, embora tenham representado avanços no combate à violência sexual, não são suficientes para abarcar todas as nuances que separam o consentimento dado de forma livre daquele que pode ser considerado inválido pela Justiça.

Ambos caem num erro recorrente quando se trata de separar o que é sexo do que é violação: focar nas ações da vítima, em vez de olhar para o agressor.

Como ela se comportou? Deixou claro que não queria seguir? Reagiu de forma “enérgica”? Ficou em silêncio? Ou, pior, concordou com tudo para que acabasse logo?

E se, em vez de fazer essas perguntas, observássemos o violador? Ele exercia algum poder sobre aquela mulher? Há relatos de violência psicológica, moral ou patrimonial? Ameaçou ou constrangeu a vítima a ponto de ela ficar impedida de dizer “não”? Já machucou outras mulheres?

O livro “Precisamos Falar de Consentimento: Uma Conversa Descomplicada Sobre Violência Sexual Além do Sim e do Não” provoca, justamente, essa inversão do olhar.

Escrito pela psicóloga Arielle Sagrillo Scarpati, pela antropóloga Beatriz Accioly Lins e pela promotora de Justiça Silvia Chakian, o livro explora de forma didática – mas sem ser enfadonho ou óbvio – os cenários em que o consentimento pode, ou não, ser considerado legítimo.

As três autoras, com diferentes experiências no campo da violência contra a mulher, chamam a obra de “antimanual”, pois não há respostas infalíveis, receitas prontas, soluções rápidas, fáceis ou inequívocas. Tudo o que envolve relações humanas é contextual, complexo e fruto de negociações constantes e contínuas.

Isso não quer dizer, porém, que elas não tenham clareza quanto aos cenários nos quais a mulher é impedida de dar o seu livre consentimento. Ele é inválido, por exemplo, se dado “mediante manipulação emocional ou chantagem”, ou se vem “da pessoa embriagada, da criança, da pessoa sem condições de dizer ‘não’”.

As autoras vão ainda mais longe: “Uma mulher em situação de violência doméstica que vive constantemente assustada, acuada ou fragilizada – essa mulher pode consentir livremente? Entendemos que não”.

“Chamamos esse tipo de consentimento de ‘consentimento viciado’, pois está comprometido por coação, coerção e pressão”. “Em situações de ameaça ou uso de força, fraude, chantagem, abuso de poder, dependência ou vulnerabilidade, o consentimento de fato não representa a vontade das pessoas envolvidas.”

O “sim é sim”, portanto, perde o seu valor se a vítima ficou sem a opção de decidir livremente. Ela disse “sim” ao chefe com medo de perder o emprego? Ao marido, para evitar ficar sem teto ou sem os filhos? Ou ao guru espiritual, diante da promessa de cura? Que domínio essa vítima teve, realmente, sobre o próprio corpo? A resposta é uma só: nenhum.

Por isso, escrevem as autoras, “falar em consentimento invariavelmente envolve abordar relações, desigualdade e poder”.

Precisamos Falar de Consentimento: Uma Conversa Sobre Violência Sexual Além do Sim e do Não. Arielle Sagrillo Scarpati, Beatriz Accioly Lins e Silvia Chakian. Bazar do Tempo (184 págs., 92 reais) – Compre na Amazon

Poder é outra palavra-chave na interação sexual. Ao contrário do que está sacramentado no senso comum, a violência sexual não é um crime de prazer ou paixão, causado por um arroubo de libido, um descontrole do homem em busca de satisfazer seus desejos. Muito longe disso, o crime sexual é uma demonstração de poder.

Esse é um dos mitos que o livro procura derrubar. Está embutida nessa ideia, mais uma vez, a culpabilização da vítima, construída a partir daquelas velhas e conhecidas frases como: “Quem mandou sair com essa roupa?” ou “Estava fazendo o que na rua a essa hora?”

Depreende-se, de perguntas como estas, que algo, na postura de quem sofreu o crime, contribuiu para que ele acontecesse. É como se não fosse preciso exigir uma mudança estrutural e radical na postura dos homens que cometem essas violências.

Não custa repetir: não é a vítima a culpada pela violência sexual. Por mais aterrorizante que seja essa ideia, não há nada que as mulheres possam fazer para impedir esse crime. A única ferramenta disponível para elas é a denúncia.

As pesquisas mostram que a maior parte dos violadores não age só uma vez. Buscar a Justiça, então, pode impedir que eles façam novas vítimas. Mas como acreditar na Justiça quando as mulheres sofrem constantes humilhações nos tribunais, por parte de promotores, advogados e juízes que questionam suas posturas e reações?

Na ausência de uma definição legal para o consentimento válido, o estupro está, no Código Penal, aberto à interpretação de agentes da lei que são fruto da mesma sociedade que normaliza a violação dos corpos das mulheres.

Como escreve a advogada criminalista Fayda Belo no livro Justiça Para Todas (Editora Planeta), os assustadores números de violência contra a mulher são resultado de “um Estado intrinsecamente machista, que utilizou a lei para determinar que a mulher não só era propriedade do homem, como se tratava de um ser humano inferior, desprovido de inteligência, autonomia e vontades, com papel meramente reprodutivo”.

Essas crenças, muito antigas e sacramentadas pela Igreja, família e pelo Estado, fundam a cultura do estupro. E é parte dessa cultura encorajar meninos e homens a demonstrar poder e virilidade, e meninas e mulheres, sempre objetificadas, a se submeter às suas vontades – e em silêncio.

Nesse contexto, falar de consentimento livre é quase subversivo. E o que o livro de Arielle, Beatriz e Silvia propõe é um avanço necessário para a proteção legal das vítimas e também para a prevenção de novos casos. •


*Cristina Fibe é jornalista e escritora especializada na cobertura de violência contra a mulher.

Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 29/08/2024