As invisíveis (6)
por Fernanda Silva
Assentada a poeira e acalmadas as discussões sobre a Olimpíada de Paris, restam duas imagens indeléveis para os brasileiros. São elas: Gabriel Medina e sua prancha levitando entre as nuvens, Rebeca Andrade recebendo a homenagem de duas americanas, uma delas a superestrela Simone Biles, ambas prostradas em reverência.
A delegação brasileira constou de 277 atletas, dos quais 55 % mulheres. E esse é um recorde histórico, nas dimensões e na equivalência. Muitas medalhas de ouro, prata e bronze. Entre as de ouro, três foram para ginástica artística, judô e vôlei de praia: todas nas modalidades femininas.
Esta Olimpíada, controversa desde a abertura, superou em abrangência todas as que vieram antes. Duas delas, e recentes, foram notáveis pela arte. A chinesa (2008) foi obra de Zhang Yimou, grande cineasta, diretor de épicos asiáticos como Lanternas vermelhas, Heroi, O clã das adagas voadoras e muitos outros. Foi deslumbrante o tratamento de épico cinematográfico que deu à cerimônia. E a inglesa (2012), sob a batuta de outro cineasta, Danny Boyle, baseou-se na exibição dos ícones da pátria, desde a rainha e os Beatles até David Beckman e James Bond, o carro Rolls Royce, o táxi Austin FX4 preto (por isso mesmo afetuosamente chamado de Black Cab), o ônibus de dois andares, a cabine telefônica escarlate. E não faltava um toque de humor, fazendo a rainha ser arrebatada pelos ares, com suas madeixas rígidas e vestuário de cores lisérgicas.
A notar agora não só a equivalência entre mulheres e homens no total das provas, mas também a grande quantidade de mulheres negras, que vão desde as provas mais modestas em que o aparelho é apenas o próprio corpo até as mais complexas. Com exceção, claro, das que são esportes de rico, como equitação e esgrima. Podemos pensar em tentativas de cooptação e despolitização, mas não dá para ignorar que há um aumento na visibilidade dos negros em geral, e não só das mulheres negras, abrindo o leque de oportunidades.
Para alegria dos brasileiros, a equipe feminina de futebol ganhou a medalha de prata, depois de longa luta histórica para derrubar a proibição que perdurou até 1979, pasmem! e ter sua legitimação. Reprovada de antemão, a modalidade masculina não conseguiu nem chegar a Paris.
A grande Marta, seis vezes eleita a maior atleta do mundo, veio a ser o pivô de um incidente que resultou em expulsão. Mas afinal o time brasileiro ficou com a medalha de prata, repetindo Atenas e Pequim, só perdendo para os Estados Unidos. Estes, como sempre, terminaram como os campeões absolutos…
Ponto alto mesmo devemos a Rebeca Andrade e a beleza de seu salto com giro tríplice no ar. Sem esquecer de render tributo a Nadia Comaneci, que meio século atrás renovou a prova, introduzindo técnicas de balé clássico. Lá estava ela como convidada de honra.
Esta Olimpíada teve em Lady Gaga, uma transgressora, uma bem escolhida celebridade para inaugurá-la. Espalhada por uma das mais lindas cidades do mundo, ao invés de confinar-se como de hábito num estádio, a festa de abertura foi cheia de belezas e de singularidades. No seu conjunto, foi concebida como uma plataforma política, uma petição de princípios cujo alvo era a direita. Por isso, privilegiou as mulheres, os negros, os asiáticos, os indígenas, os deficientes, os trans, os estrangeiros, e até os refugiados, que tiveram sua representação oficial. Enfim, os excluídos em geral. Não podia ser mais clara.
Embora na realização concreta completamente diferentes, são aparentadas essa festa e a de Lula subindo a rampa. Lula acompanhado por uma seleta de oprimidos: mulher, indígena (o cacique Raoní, nos seus garbosos 90 anos de lutas pela causa de seu povo), garoto negro, deficiente, criança, trans, até um cachorro, sem esquecer os direitos dos animais. E receber a faixa presidencial de uma catadora é um símbolo que não tem preço. Isso também é uma plataforma.
No encerramento, uma visão de esfregar os olhos: a prefeita de Paris empunhando e repassando a bandeira das Olimpíadas para a prefeita (negra) de Los Angeles, sede do próximo certame. Duas mulheres comandando duas das maiores e mais importantes cidades do mundo.
Fernanda Silva é Professora da FFLCH-USP