A hanseníase chegou nas Américas muito antes do que imaginávamos. A doença assolou a Europa durante todo o período medieval. A ignorância daqueles tempos dominados pelo preconceito e a intolerância religiosa fazia com que ela fosse considerada uma punição contra almas impuras que viviam no pecado.
Hoje sabemos que se trata de uma infecção bacteriana crônica, transmitida por gotículas de saliva e secreções nasais, depois de longos períodos de contato. É curável com antibióticos e outras medicações distribuídas pelo SUS.
As pessoas infectadas desenvolvem manchas na pele, com comprometimento da sensibilidade local. Quando progride sem tratamento, acomete os nervos periféricos e surgem dores, fraqueza muscular, dormência, formigamentos, paralisias nos braços e pernas, caroços e inchaços nos lóbulos das orelhas e na face e feridas pelo corpo. Pode haver necrose e perdas de cartilagens, dos dedos das mãos e dos pés, entre outras deformidades.
A aparência dos doentes e o pavor de se contrair a doença espalhou leprosários pelos cinco continentes. A descoberta do norueguês Gerhard Hansen, o primeiro a identificar a Mycobacterium leprae, a bactéria causadora, em 1873, não foi suficiente para abalar a certeza sobre o tal castigo imposto por Deus.
No Brasil, os leprosários só foram fechados quando a internação compulsória foi proibida por lei, em 1962. Hoje, somos o segundo país do mundo com mais casos. Na nossa frente, apenas a Índia.
Por centenas de anos, a M. leprae disseminou-se pela Europa, Ásia e África. Até agora, os cientistas achavam que ele teria sido introduzido nas Américas a partir de 1500, pelos europeus colonizadores e africanos escravizados.
Essa convicção só começou a ser abalada em 2008, quando uma segunda espécie da bactéria, a Mycobacterium lepromatosis, foi isolada no México. Ela também teria vindo com os europeus?
Em 2016, veterinários encontraram a M. lepromatosis em lesões cutâneas de esquilos vermelhos. Foi a primeira demonstração da presença dessa espécie em território europeu.
Em 2018, ao fazer o sequenciamento de diversos DNAs de populações extintas, o grupo de Nicolás Rascovan, do Instituto Pasteur, identificou a M. lepromatosis num esqueleto retirado de uma tumba de 5 mil anos, escavada na Suécia. No mesmo dia, Rascovan encontrou o DNA da bactéria nos ossos de um indivíduo que viveu mil anos atrás, na costa da British Columbia, no Canadá.
Maria Lopopoulo, do mesmo grupo, a partir do screening de uma base de dados de DNAs de populações ancestrais, identificou o da M. lepromatosis em dois esqueletos de mais de mil anos, na Argentina. A presença da bactéria em países separados por mais de 10 mil quilômetros, como Suécia e Argentina, confirmou a suspeita de que essa espécie se disseminou por várias partes do mundo.
Em seguida, eles pesquisaram a M. lepromatosis em 408 pacientes diagnosticados com hanseníase. A bactéria foi detectada em 34 deles – mexicanos na maioria.
Calculando quanto tempo teria levado para as duas espécies (M. leprae e M. lepromatosis) acumularem as mutações presentes nos genomas atuais, os geneticistas estimaram que elas divergiram cerca de 1 milhão de anos atrás. E que a M. lepromatosis emergiu em algum lugar das Américas há 9 mil anos.
Não está claro se as migrações da Ásia para a América do Norte, através do Estreito de Bering, na época em que os dois continentes ainda estavam unidos por uma ponte de terra, teriam trazido um precursor da M. lepromatosis ou se os primeiros habitantes das Américas foram infectados por animais do continente.
Ainda ficam dúvidas. Como os esquilos vermelhos da Europa adquiriram a M. lepromatosis oriunda das Américas? A hipótese mais aceita é a de que a bactéria tenha chegado a eles por meio dos esquilos cinzentos da América levados para a Europa.
Por que tanto tempo para identificar a presença da M. lepromatosis nas Américas? Ela nunca havia sido encontrada em lesões ósseas dessas populações. Nos esqueletos estudados, a micobactéria isolada sempre foi a M. leprae. A outra espécie costumava poupar o esqueleto?
As descobertas atuais permitem concluir que a M. lepromatosis convive com as populações das Américas há muito tempo. A partir de 1500, os europeus e os africanos trouxeram a M. leprae que se disseminou com mais facilidade e se tornou a espécie dominante. •
Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As pegadas da hanseníase’