Tenho acompanhado de perto algumas ações realizadas em territórios periferizados e, a partir dessa vivência, percebo com clareza que as periferias estão reinventando as formas de fazer política no Brasil. Esse movimento não é recente, mas tem ganhado mais força, visibilidade e consistência nos últimos anos, sobretudo pela atuação de lideranças, ativistas, coletivos e movimentos que, a partir de seus próprios territórios, passaram a construir estratégias de resistência, participação e ocupação dos espaços de poder.
O que se observa é uma profunda transformação na maneira como esses grupos compreendem a política e se posicionam dentro dela. Mais do que uma disputa por espaço, trata-se de uma reconfiguração do próprio conceito de política, que deixa de ser algo restrito às instituições formais e passa a ser, também, aquilo que se constrói nas quebradas, nas redes de solidariedade, nas ações comunitárias e nas lutas por direitos.
Essa reorganização surge como resposta direta à constante marginalização das pautas dos grupos minorizados, frequentemente classificadas pelo campo progressista como “pautas identitárias”. Esse termo, que deveria ser apenas uma categoria analítica, muitas vezes é utilizado de forma pejorativa para deslegitimar as reivindicações de mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e das populações periféricas. Na prática, essa classificação funciona como um mecanismo de silenciamento, onde as pautas que dizem respeito diretamente à sobrevivência, dignidade e participação desses grupos são vistas como secundárias, como se fosse possível construir justiça social sem enfrentar as opressões que estruturam a sociedade.
A política que nasce da periferia não é apenas uma demanda por inclusão; é uma exigência de reconfiguração das estruturas de poder
As chamadas “pautas identitárias” são, na verdade, estruturais. Falar sobre racismo, machismo, LGBTfobia, desigualdade territorial e violência de Estado não é tratar de questões individuais ou isoladas, mas sim de pilares que sustentam a própria desigualdade. Ao minimizar essas pautas, o campo progressista acaba reproduzindo uma lógica excludente. As periferias, então, ficam sem representação real e acabam reféns de uma burocracia partidária que, além de ser distante dos territórios, também não se dispõe a abrir espaço para que lideranças locais possam disputar eleições e, consequentemente, ter condições de construir políticas públicas que dialoguem com suas realidades concretas.
Essa ausência de representação não é apenas um problema de democracia formal, mas sim uma questão que impacta diretamente a vida cotidiana das pessoas que vivem nas periferias. Quando quem toma as decisões não vive os mesmos desafios, as políticas públicas tendem a ser genéricas, baseadas em uma lógica universalista que não dá conta de enfrentar as especificidades das desigualdades. Assim, surgem políticas que até parecem bem intencionadas, mas que não alcançam quem mais precisa, porque foram pensadas a partir de um olhar que não contempla as múltiplas realidades da periferia.
Diante desse cenário, as periferias vêm criando suas próprias formas de fazer política, que não se limitam às estruturas tradicionais. São coletivos culturais, redes de apoio, movimentos de base, organizações comunitárias e lideranças que, mesmo fora das instituições, constroem processos de formação política, fortalecem o senso de pertencimento e elaboram propostas concretas para transformar seus territórios. E não é por falta de capacidade ou de projetos que as periferias não estão mais presentes nas esferas de poder, mas sim por uma série de barreiras institucionais que dificultam ou inviabilizam a entrada de corpos e vozes periféricas nesses espaços.
O fato é que, enquanto parte da esquerda insiste em tratar essas lutas como fragmentadas, a própria prática cotidiana nas periferias demonstra que não existe possibilidade de transformação social sem levar em consideração as intersecções entre raça, classe, gênero, sexualidade e território. A luta é uma só, mas ela precisa ser construída a partir da escuta e do protagonismo daqueles que estão na linha de frente das opressões. A política que nasce da periferia não é apenas uma demanda por inclusão; é uma exigência de reconfiguração das estruturas de poder, onde a democracia não seja apenas uma palavra bonita nos discursos, mas uma prática viva, construída a partir da diversidade e da pluralidade dos sujeitos que compõem este país.
É urgente que se compreenda que as periferias não são apenas objeto de políticas públicas, mas sujeitos políticos plenos, capazes de pensar, propor e executar soluções para os seus próprios problemas. Ignorar isso é não apenas um erro político, mas também um ato de manutenção das desigualdades. Por isso, quando olhamos para os territórios periferizados e vemos o florescimento de novas formas de fazer política, entendemos que a margem já não aceita mais ser margem. Ela se levanta, se articula e ocupa, transformando-se, cada vez mais, no centro pulsante de uma nova política possível.