Às dez e meia da noite de 30 de julho de 1971, terminada a ronda das carcereiras, a tábua que recobria o buraco feito no piso de um dos ambientes da prisão de Cabildo, em Montevidéu, é puxada e 38 mulheres, todas presas políticas, se preparam para escapar.
Elas estão organizadas em três grupos. A primeira delas salta no buraco e avança no estreito túnel até a rede de esgoto. As demais a seguem, atravessando cerca de 1 quilômetro sob odores fétidos. Algum tempo depois, saem – uma a uma – de outro buraco, este no piso de uma casa de fachada, ocupada por um casal de militantes. Elas então se dispersam. Voltam a estar livres, mas na clandestinidade.
Planejada e realizada pelo Movimento de Libertação Nacional/Tupamaros (MLN), grupo uruguaio de guerrilha urbana surgido nos anos 1960, a Operação Estrela – como foi batizada a ação – é muito bem contada pela jornalista argentina Josefina Licitra no livro 38 Estrelas: a Maior Fuga de um Presídio de Mulheres da História.
Fruto de um minucioso trabalho jornalístico e narrado com recursos literários, combinando perfis de personagens a toques de suspense e tensão, a obra surgiu de uma inquietação de Josefina: por que esse episódio era tão pouco recordado pela esquerda latino-americana?
A própria jornalista só soube dele por uma menção feita por Lucía Topolansky, uma das “estrelas fugitivas” (e, mais tarde, deputada, senadora e vice-presidente do Uruguai), numa entrevista a respeito de seu companheiro, o ex-presidente Pepe Mujica, ele também um ex-tupamaro.
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38 estrelas – a maior fuga de um presídio de mulheres da história. Josefina Licitra. Tradução: Elisa Menezes. Relicário (232 págs., 65,90 reais) – Compre na Amazon
Ao contar a trajetória de militância de várias daquelas fugitivas, Josefina – que entrevistou 15 delas –, propõe uma perspectiva ainda pouco explorada na análise da atuação dos grupos subversivos na América Latina pós-revolução cubana: a das mulheres, sejam elas urbanas ou do campo, da classe trabalhadora ou da elite, operárias ou estudantes, mães ou não.
A maioria tinha pouco mais de 20 anos no momento da captura e prisão. Em 38 Estrelas, elas são tiradas do papel secundário que a sociedade – e o próprio movimento – lhes reservava para se tornarem protagonistas da história, a própria e a coletiva. E como a reconstituição dos eventos e do ideário da época é baseada em depoimentos atravessados pelos ardis da memória, a autora assume as contradições e as peculiaridades na evocação dos detalhes.
O Uruguai do início da década de 1960 vivia uma espiral inflacionária e recessiva que, somada a demissões, problemas sindicais e precarização de espaços de trabalho, desencadeou um forte descontentamento popular. Marchas de trabalhadores rurais chamaram atenção para os litígios no campo e ressoaram nas cidades. O MLN surgiu nesse contexto, sob a liderança de Raúl Sendic, entre outros.
É importante recordar que, no período retratado, o Uruguai estava sob um governo autoritário, mas ainda nos parâmetros democráticos – a ditadura civil-militar se iniciaria mais tarde, em 1973. Por isso, a força repressiva estatal mantinha-se a cargo, majoritariamente, da polícia.
No livro, Josefina apresenta as diferentes motivações das jovens que abraçaram a luta armada promovida pelo MLN, acabaram presas e fugiram na Operação Estrela. Ela destaca ainda os debates originados dos diferentes pontos de vista que coexistiam em uma mesma organização de esquerda, inclusive sobre as possibilidades de ascensão e liderança das mulheres.
É uma obra provocativa, que contribui para a reflexão crítica sobre os horizontes da atuação política coletiva também no presente. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
Arquitetura e Trabalho Livre, obra-farol de Sérgio Ferro há alguns anos esgotada, volta ao mercado compartida em vários volumes. O primeiro é O Canteiro e o Desenho e Seus Desdobramentos (Editora 34, 296 págs., 84 reais), texto inicial da teoria crítica da arquitetura construída pelo autor.
É no Brasil de dentro, aquele das memórias ancestrais e da mão na terra, que o carioca Luiz Rufino, escritor e professor de Educação, assenta as 40 breves crônicas de Cazuá: Onde o Encanto Faz Morada (Paz & Terra, 172 págs., 59,90 reais).
Mia Couto explica, no início de A Cegueira do Rio (Companhia das Letras, 240 págs., 74,90 reais) que se baseou numa insurreição popular real, ocorrida entre Moçambique e a Tanzânia, no início do século XX, para contar mais esta história sobre as violências da colonização.
Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As mulheres nos anos rebeldes’