No mês em que se completam dois anos de sua morte, a cantora e compositora Rita Lee é tema de dois documentários. Um deles é Mania de Você, que estreou no streaming HBO Max em 8 de maio, dia exato da partida da roqueira, em 2023. O outro se chama Ritas e, depois de abrir o festival É Tudo Verdade, em abril, chega às salas de exibição na quinta-feira 22.
O principal ponto comum entre ambos é a participação ativa da família de Rita Lee, tanto na articulação do que e de como mostrar sobre ela quanto na liberação do uso de acervos pessoais da cantora. Ritas, especialmente, aproveita-se bem disso, com o diretor Oswaldo Santana mostrando vídeos domésticos da artista falando sobre vida, morte, amigos e amores, ou alimentando seus gatinhos com requeijão. É um acesso bastante íntimo que se articula ao conceito geral de narrar a trajetória da protagonista exclusivamente a partir de declarações dela própria em momentos distintos ao longo de décadas.
Já Mania de Você, com direção de Guido Goldberg, segue estrutura mais convencional e alterna arquivos com depoimentos de familiares e artistas sobre Rita Lee. O relato é conduzido a partir de uma carta de despedida deixada aos filhos, cuja leitura é registrada no filme poucos dias antes da morte da roqueira. Aparecem no filme, entre outros, Gilberto Gil, Roberto de Carvalho e Ney Matogrosso.
Filha de pai americano e mãe italiana, Rita Lee começou na música nos anos 1960, ao fundar o grupo Os Mutantes com Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Na banda, e sob o contexto tropicalista, ela inseriu guitarras elétricas, irreverência e experimentações psicodélicas. Virou figura emblemática de comportamento ousado num período violento da ditadura. Após desentendimentos cujas versões variam em intensidade e motivo conforme quem os relata, Rita liderou uma banda com o guitarrista Luís Sérgio Carlini, o baixista Lee Marcucci e o baterista Emilson Colantonio e deu a ela o nome Tutti Frutti.
A partir do começo dos anos 1970, a Tutti Frutti lançou sucessos como Agora Só Falta Você, Esse Tal de Roque Enrow e Ovelha Negra, num misto de rock, pop e crítica social entremeado por humor e sarcasmo. Unida na vida e no trabalho a Roberto de Carvalho e seguindo carreira solo nos palcos, ela dominou as rádios nos anos 1980 e 1990 com sucessos como Mania de Você, Lança Perfume e Desculpe o Auê. De tudo isso surgiu o título de Rainha do Rock, que ambos os filmes procuram valorizar.
Rita Lee foi também figura recorrente na televisão e no cinema, quase sempre interpretando a si mesma ou variações do tipo singular que encarnava publicamente. Essas participações não apenas reforçaram sua imagem irreverente como expandiram sua presença para além da música.
A primeira aparição nas telas foi ainda como integrante de Os Mutantes, numa cena de As Amorosas (1968), de Walter Hugo Khouri. Tendo feito participações em diversos programas, novelas e esquetes de humor ao longo dos anos, ela apareceu em Durval Discos (2002), de Anna Muylaert, à procura de um vinil de Caetano Veloso, e ganhou prêmio de melhor atriz coadjuvante no Cine PE, no Recife, pela animação Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll (2006). No longa-metragem, Rita fazia a voz da bagaceira Rê Bordosa, criação do quadrinista Angeli, cujo visual sempre foi bastante similar ao da cantora.
Partes dessa trajetória se alternam nos dois documentários recentes de formas complementares. Mania de Você invisibiliza Os Mutantes, retratando uma jovem Rita cantora que foi fazer sucesso como vocalista da Tutti Frutti. A omissão provocou comentários negativos sobre o filme e tem sido justificada pela produção por conta da não liberação do uso de imagens do grupo.
A ausência de imagens dos Mutantes é sentida em ambos os projetos, iniciados com a cantora viva
No caso de Ritas, há um pequeno trecho sobre a primeira banda da cantora, sem citar o nome dos demais integrantes, seguido por falas dela própria narrando ter sido expulsa do grupo e passado um longo período isolada e melancólica por conta disso. Por outro lado, o filme omite as situações dramáticas de Rita Lee envolvendo abuso de drogas, enquanto Mania de Você a rememora, inclusive, por meio de relatos do marido e dos filhos – que relembram atitudes agressivas da artista e um grave acidente doméstico provocado pelo entorpecimento.
Nenhum dos dois filmes, no entanto, fecha o foco sobre controvérsias profissionais e pessoais de Rita Lee – inclusive, porque ambos contaram com a participação da família. Os documentários procuram, sobretudo, rememorar com afeto e carinho a ousadia da cantora e ilustrar sua presença magnética. No entanto, Rita é tão singular que nenhum dos filmes parece capaz de captar a energia que emanava dela.
O pouco tempo de sua partida e o cuidado da família em preservar o encantamento em torno de Rita Lee – ainda que sem esconder algumas de suas contradições – fazem com que Ritas e Mania de Você sejam um tanto tímidos na relação dos diretores com a personagem que retratam.
Isso, provavelmente, se deve também ao fato de que ambos os projetos foram iniciados quando ela ainda estava viva. Os realizadores, claramente, se sentem, de alguma, como se fossem guardiões de uma memória que ela aceitou partilhar com eles. Talvez a distância do tempo e das perspectivas ainda traga outras aproximações com Rita Lee. •
Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As muitas vidas de Rita Lee’