… As memórias continuam, por Izaías Almada

ANO DE 1997

Eu carregava na alma o peso de uma decisão tomada. Como uma espécie de Frankenstein dos trópicos, criara um monstro dentro de mim, um novo herói sem caráter.

Macunaíma da pós-modernidade preparava-me para a primeira incursão no mar de lama. E os sonhos da juventude? E os conselhos e exemplos paternos? E a militância de esquerda? E Deus? Se ele existia devia estar mesmo de férias.

Mudaram as regras do jogo ou mudara eu? Muito provavelmente as duas coisas. Tinha que marcar com alguma atitude, com algum gesto, a ruptura.

Assim como o presidente sociólogo, que criou e aprovou a reeleição em benefício próprio e precisava que esquecessem o que ele tinha feito.

A dúvida, entretanto, estava no que fazer: servir de mula e levar um quilo de cocaína para a Europa? Aceitar o papel de laranja e dar um golpe de milhões num político ou empresário qualquer? Voltar ao negócio da publicidade e investir junto aos ingênuos da nova geração, onde alguns nem sequer sabiam escrever corretamente o português? Ou juntar-me a um grupo de marginais e planejar um assalto espetacular a um banco? As oportunidades não faltavam, qualquer uma delas mais aliciante do que a outra.

A propósito, além da ironia e das idiotices imaginadas, fiquei pensando mesmo a sério quais seriam as opções de trabalho para um jovem à procura de emprego naquele momento…

Colonizadores tarados, degredados entregues à própria sorte que se juntaram às nativas de um paraíso tropical e mais tarde às negras atadas pelas mãos e pelos pés, eram os meus antepassados.

Portanto, nada mais natural que em momentos de dúvida existencial viessem à tona os traços atávicos da minha formação genética e cultural, toda ela predatória, selvagem, conservadora e impiedosamente egoísta.

Olhando à minha volta, podia perceber o quanto alguns de meus antigos companheiros tinham sabido organizar a própria vida, assimilando rapidamente as mudanças do mundo globalizado, defensores que eram agora de um sistema econômico neoliberal, de um sistema político de defesa da democracia burguesa e de um modo de vida que identificavam como o sinal de novos tempos, desde que caíra o muro de Berlim.

Assim pensava e agia o patético e ambicioso PSDB, o partido de José Serra, Aloysio Nunes, Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso, entre outros..

O socialismo, Marx e Engels, Lenin, Mao Tse Tung, Fidel, Guevara e a Revolução cubana, Ho Chi Min, a luta de classes, tudo isso fora devidamente encaixotado e arrumado no museu da história, para que em seu lugar o mundo passasse a discutir novas ideias e a se preocupar com novos valores que continuassem a colocar o próprio homem no centro dos acontecimentos, mas com o foco do interesse sociológico ora se orientando para algum terrorista palestino ou para um magnata da informática, para o negro esquelético da Etiópia ou para o homossexual dos desfiles de moda assassinado por um rapaz de programa.

Importavam mais as lindas mulheres de maiôs curtíssimos nas propagandas ou uma negra condenada à prisão por roubar algumas coisinhas para seu filho em um supermercado?

A história da humanidade continuava seu caminho inexorável rumo a um futuro cada vez mais inimaginável. O avanço rápido e devastador da tecnologia de ponta e da informática criaram finalmente o novo homem: um ser frágil, pronto a consumir e a ser consumido com a velocidade da luz. E pelas redes sociais… Covarde e hipócrita. O importante era ser moderno.

Twiters, Facebooks, Instagrans, Whatspps, sites e blogs, mudariam a qualidade da comunicação entre as pessoas, tornando-as cada vez mais arredias, vaidosas e insensíveis, ao contrário daquilo que se esperava. O fundo do esgoto, afinal, veio ao de cima.

Ainda nesse mesmo ano de 1997, a editora Scipione, sob a responsabilidade do professor universitário e editor Jiro Takahashi, lançou um dos livros mais completos sobre a vida carcerária no Brasil durante e após a ditadura militar que infelicitou o país a partir do Golpe de Estado de 1964.

O livro “Tiradentes: um presídio da ditadura”, contendo a memória de presos políticos e uma belíssima apresentação do professor Antonio Cândido, grande conhecedor e analista da literatura brasileira, levou ao seu lançamento numa livraria do bairro de Pinheiros em São Paulo ao redor de novecentas a mil pessoas, tendo sido esgotada a venda dos primeiros quatrocentos exemplares enviados para o lançamento, criando-se a necessidade para centenas de pessoas presentes ao evento de deixarem os seus endereços para receber o livro em suas casas.

Ao lado dos companheiros José Adolpho de Granville Ponce e Alípio Freire, tive a honra de ser um dos organizadores do livro.

E aqui gostaria de lembrar o poema do cubano Roberto Fernández Retamar com o qual o professor Antonio Candido termina a sua apresentação do livro:

                            EL OTRO

                         Enero 1, 1959

           Nosotros, los sobrevivientes,
           A quienes debemos la sobrevida?
          Qien se murió por mi en la ergástula,
          Qien recebió la bala mia.
          La para mi, en su corazón?
          Sobre que muertos estoy yo vivo,
         Sus huesos quedando en lós mios,
         Los ojos que le arrancaron viendo
        Por la mirada de mi cara,
        Y la mano que no es su mano,
        Que no es ya tampoco la mia,
        Escribiendo palabras rotas
        Donde está él, en la sobrevida?

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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Last Update: 17/01/2025