A meia verdade é a pior forma de mentira. É por aí que caminha um texto, que viralizou, apresentando o cineasta Walter Salles – do filme “Ainda estamos aqui” – como um beneficiário da ditadura que matou o deputado Rubens Paiva.
Walter Salles é herdeiro do banqueiro Walther Moreira Salles. No texto, o pai é apresentado como financiador do IPES, o Instituto de Pesquisas Econômico Sociais que teve papel fundamental no financiamento midiático em favor do golpe de 1964.
Eu escrevi a biografia de Moreira Salles. Não foi uma biografia autorizada, apesar do acesso que tive ao próprio embaixador, em dezenas de entrevistas, à parte do seu acervo e aos seus primeiros sócios. O livro descontentou os filhos por mencionar episódios delicados, como seus embates com Roberto Marinho, de quem foi sócio no Parque Lage, ou seus negócios com dívida externa brasileira. Foi um livro que homenageou a grande estatura pública dele, mas sem ocultar as fraquezas.
Walther Moreira Salles fazia parte de um grupo de empresários que apoiou Getúlio Vargas e seu sucessor João Goulart. Foi sua indicação para Ministro da Fazenda de Jango que viabilizou o parlamentarismo contra o golpismo das Forças Armadas, que queriam impedir Jango de assumir a presidência, com a renúncia de Jânio.
Aliás, pouco antes de renunciar, Jânio foi procurado pelos três comandantes militares oferecendo seu apoio para o caso de pretender dar um golpe. Jânio recusou apostando em outra saída: ele renunciando, saindo do país em um cruzeiro marítimo e, na volta, sendo consagrado pelo povo que exigiria sua volta. Na volta do cruzeiro, o povo não compareceu.
Há um conjunto de informações inéditas no livro. A história dos militares me foi relatada por Rafael de Almeida Magalhães. A do cruzeiro, pelo próprio Walther, que contou que foi planejado meses antes da renúncia.
Para viabilizar a posse de Jango, foi armada uma operação sigilosa para levar Walther até Porto Alegre, onde ele testemunhou a enorme coragem de Leonel Brizola, comandando a resistência – conforme me relatou. Walther foi o avalista do parlamentarismo justamente por suas relações estreitas com o sistema financeiro norte-americano – era amigo íntimo de Nelson Rockefeller – e com os grandes grupos de comunicação dos EUA.
Acertado o parlamentarismo, teve que voltar escondido, indo a Buenos Aires e voltando para São Paulo com carteira de identidade falsa.
O texto diz que sua ligação com Rockefeller foi fundamental para evitar sua cassação. Tem razão, mas não significa, em nenhum momento, adesão ao golpe.
Não se deve esquecer que a primeira grande denúncia contra as torturas praticadas pelo regime foi feita a Nelson Rockefeller em um evento no Museu de Arte Moderna que, possivelmente, foi a causa do assassinato de Zuzu Angel.
Para se contrapor à enorme frente midiática contra Vargas, Moreira Salles chegou a negociar uma grande editora, fundindo a Érica (que publicava a revista Sombra) com a Última Hora, de Samuel Wainer. Por conta disso, foi alvo da CPI da Última Hora.
Walther foi salvo da cassação por duas circunstâncias. A primeira, no governo Castello Branco, por uma circunstância familiar: dona Argentina, esposa de Castello, tinha relações de parentesco com a família de Elisinha, esposa de Walther.
A segunda tentativa foi com Costa e Silva. José Carlos Marcondes Ferraz, conhecido playboy do Rio de Janeiro dos anos 60, me contou que passou uma noite na casa de Walther, com a ameaça de, a qualquer momento, a casa ser invadida por militares. Telefonemas de autoridades norte-americanas influentes – cuja amizade Walther cultivara como embaixador de Vargas e de JK – seguraram a cassação. E Delfim Neto foi essencial, a partir de uma conversa que teve com Costa e Silva – que me foi relatada pelo próprio Delfim.
Costa e Silva o procurou e perguntou o que aconteceria se cassasse Moreira Salles. E Delfim:
- Pouca coisa, general. Nos indisporíamos com os banqueiros norte-americanos e europeus, e também com as grandes redes de comunicação dos Estados Unidos. Mas apenas isso.
Mesmo assim, a família Moreira Salles saiu do país e mudou-se para a França, por receio de ter o mesmo fim de Rubens Paiva.
O texto não informa que Waltinho, o filho, frequentava a casa de Rubens Paiva, era amigo de suas filhas. Fugia do ambiente pesado da sua própria casa – devido aos embates constantes do casal Moreira Salles – e ia buscar a leveza da família Paiva.
O Unibanco, de fato, foi beneficiado pela política econômica de Castello Branco, como outros bancos nacionais, a partir das reformas conduzidas por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões. O texto não consegue entender que, por baixo da política, havia uma estrutura empresarial e uma elite econômica carioca que orientava o país desde Vargas.
Roberto Campos foi assessor de Café Filho, de JK, participou da fundação do BNDES e, assim como Gouvea de Bulhões, transitava pelo alto mundo financeiro e empresarial do Rio de Janeiro.
É essa elite carioca – que se frequentava desde os anos 40, quando o Rio era apenas uma cidade que ainda não se internacionalizara -. além das ligações ultramarinas, que impediu Moreira Salles de ter o mesmo destino de grupos paulistas destruídos pela ditadura pelo apoio a Jango – como os Wallace Simonsen.
Mesmo no ambiente opressivo da ditadura, Moreira Salles ajudou JK e o próprio Jango, em seu exílio no Uruguai. Na ocasião, entrou em contato com banqueiros uruguaios, garantindo operações de financiamento das atividades de Jango.
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