“Já não há mais nada aqui para um guerreiro. Estamos conduzindo barganhas, um trabalho para velhos. Os jovens fazem as guerras, e as virtudes da guerra são as virtudes dos jovens: coragem e esperança no futuro. Depois disso, os velhos acertam a paz, e os vícios da paz são os vícios dos velhos: desconfiança e cautela. Assim é que é.”
Com esse primor literário, o príncipe Faissal encerra as 3h40 de Lawrence da Arábia, o épico mais caro e deslumbrante da história do cinema, ombreado honrosamente por robustos concorrentes como o Spartacus, de Kubrick, e o Andrei Rubliev, de Tarkovski. Lawrence “deu” tudo aos hashemitas, mas seus compatriotas cancelaram a entrega. Como assim, se nas piadas do velho Ocidente (racismo recreativo, certo?) o papel de desonesto é sempre do comerciante árabe?
Na vida real, Faissal ousou tomar de volta a Síria, mas o general Gouraud, comandante-em-chefe da Armada Francesa do Levante, redimiu da vergonha completa o colonialismo maneta. De quebra, limpou suas botas na tumba de Saladino. O ano era 1918. O marechal Allenby, líder da Força Expedicionária Egípcia, já tinha a Palestina, Jerusalém incluída. A certa altura de sua campanha, Lawrence foi visto no forte de Qasr al-Azraq — hoje parte da Jordânia — folheando um exemplar de A Morte de Arthur. A távola redonda do século XX era farta em scotch e bordeaux, compassos e sistemas métricos. O fim da Primeira Guerra Mundial foi a última cruzada. O Levante era novamente “nosso”. “Estamos de volta, amigo!” E o resto todos sabem.
Sabem mesmo?
A moda é puxar o fio genético da carnificina palestina remetendo o tracing back às encrencas de 1948.
Essa rememoração, por supuesto, enfatiza o Holocausto e o imperativo ético do Eretz Yisrael. Ela fala de jihad, da Mão Negra e de uma “teimosia” árabe, obstinação irredutível, primitiva.
— Eles jamais nos aceitaram e jamais nos aceitariam — declararam os sionistas, há anos. Benzion Netanyahu chegou certa vez a dizer que “a inclinação ao conflito está na essência do árabe”. “Ele é o inimigo por essência. Sua personalidade não permite compromissos. Não importa o tipo de resistência que ele vá encontrar, nem o preço que ele vá pagar. Sua existência é de guerra perpétua”, completou o historiador. Seu filho Bibi que o diga.
A outra face dessa mesma rememoração sublinha uma “truculência” judaica.
— Eles entraram de sola — acusam os palestinos. — E os juízes estavam comprados.
Aponta-se assim as raízes precárias da tese sionista, a violência implacável com a qual os judeus das modernas aliyahs trataram os goym que lá estavam. “Jamais existiram ‘palestinos’”, afirmou Golda Meir, no mais desastroso lance de sua carreira (a lista é longa). Essas grossas cicatrizes também fazem vir à tona os padecimentos da Nakba e as sórdidas milícias de que a boa consciência tratou logo de afastar-se.
Essa rememoração é prudente, mas patina: faculta uma escolha ao leitor, a partir de preferências carregadas de religião e, pior, de racialismos não mais aceitáveis. Ela ginga ao sabor dos partidos tomados. É por certo oportuna, se o assunto é a História, mas põe foco nos fantoches e tira da cena os ventríloquos. O que falta muitas vezes é lembrar com mais demora o quem foi quem? e, acima de tudo, o quando?
Einstein apontou os ventríloquos desse espetáculo e, inteligentemente, lavrou a lucidez subatômica em cartório, respondendo ao celerado Rifkin, em 1948. Mas tratou de assinalar um recuo importante:
“Quando a catástrofe real e final se abater sobre nós na Palestina, os primeiros responsáveis por ela serão os britânicos, e os segundos responsáveis serão as organizações terroristas surgidas do nosso próprio lado. Não quero ver ninguém associado a essa gente desorientada e criminosa.”
Tradução do axioma: a Palestina britânica e os grupos sionistas extremistas estavam associados. One and the same. E isso foi antes.
Corolário decorrente: tenho um nome a zelar e quero distância de Irgun(s) e Lehit(s).
Einstein foi antissemita? Traidor inconteste de seu povo e de seu Deus? Ou apenas a lúcida voz erguida contra a fascistização precoce — imediata, talvez — da causa sionista? Os homens de paz, desconfiados ou cautelosos, sentem com facilidade o cheiro de sangue que atrai as hienas e os serviçais da violência. As técnicas e modos do fascismo estão à disposição de todos.
Mas por que exatamente os britânicos?
Sim. O que falta nessas rememorações, sobretudo quando feitas no Brasil, é estender a cronologia para trinta anos antes, para a hora decisiva em que Sykes e Picot — scotch e bordeaux sobre a mesa — picotaram o deserto entre si, nas espaldas de seus “sócios” árabes.
— Sócios? — questionaria um Churchill. — Eles nunca foram nossos sócios.
In deed. Todo homem é dragado por seus interesses e movido por seus cálculos de risco. Os árabes também calcularam. Só que, acima do pragmatismo neutro, a simples verdade bélica é, nesse caso, uma só: sem os camelos e as cimitarras “selvagens”, não havia chance alguma de os ingleses destrincharem o Império Otomano, na pinça que o fez em pedaços. A pinça era Lawrence por dentro e Allenby por fora, sob a regência lacônica do Parlamento. Em seguida, o estilete trabalhou: as réguas obtusas da ortogonia sulcaram o deserto com grotescas linhas retas, que são na verdade lâminas. Giraram-se os compassos sobre os mapas. E sobre as populações. Por isso, nenhum inglês dirá nada. Franceses tampouco.
Sorry, mister Starmer.
Désolée, monsieur Macron.
Por isso também, a combativa deputada Irene Montero poderá discursar dez vezes com os dedos levantados contra a face inerte de Kaja Kallas e Ursula von der Leyen. A estatura moral da Europa jamais existiu no deserto, nem ao sul do Equador. A rigor, nem mesmo nas planícies verdejantes de seu próprio continente o mito de tal estatura resistiu a uma jazida de carvão, uma mina de ouro, um poço de petróleo, um fundo de investimento. Vichy foi asquerosamente antissemita, como a Itália de Mussolini e, por óbvio, a Alemanha de Hitler. Nas Bolsas da velha Europa, o plot da mixórdia levantina, no presente, não é o sofrimento prévio do povo judeu, mas sim a transformação da elite dirigente de Israel em uma casta de prepostos do tecnofascismo, tensionando a fronteira do Ocidente com a China. As evidências gritam, e apenas a má consciência as denega.
O impacto catastrófico da Segunda Guerra desbota quase sempre a memória da Primeira. Por isso, é comum aceitarmos certas considerações equívocas. O Estado judaico, prometido por Balfour em 1917, engastou-se pouco a pouco na Palestina mandatória, com as bênçãos da polícia administrativa e das concessões econômicas. É claro que o Holocausto precipita e embasa uma ratificação humanitária. O assunto, entretanto, novamente, não é a legitimidade do pleito judaico. O assunto de Einstein é o modo desastroso com o qual a Coroa Britânica montou, na Palestina mandatória, uma vil sociedade de classes importando uma classe dirigente para proletarizar o “Outro”.
De modo complementar, o assunto de David Lean é a sua antessala: de que modo Sua Majestade apossou-se da terra, e a Liga das Nações carimbou a escritura.
Ou seria por acaso que o Estado de Israel defendido por Bibi Neta corresponde estritamente ao traçado da OETA Oeste? E a carta de Ben Gurion a seu filho? O ano era 1937:
“Os árabes têm muitos países que são subpovoados, subdesenvolvidos e vulneráveis. […] Eles já têm uma abundância de desertos, mas não de força de trabalho, nem de recursos financeiros, nem de criatividade.”
Vários trechos dessa carta são peças exemplares do “melhor” colonialismo eurocêntrico:
“É provável que eles aceitem que nós fiquemos com o Negev e o façamos prosperar, em troca de nossa assistência financeira, militar, organizacional e científica”, escreveu Gurion. Por outro lado, conjecturou: “É possível que eles sigam os ditames de suas emoções nacionalistas estéreis”, e recusem. “Se isso acontecer, teremos que falar com eles em outra linguagem.”
O Faissal figurado por David Lean jamais concordaria:
— Você pensa — ele pergunta ao tenente Lawrence —, você pensa que nós somos um joguete? Que somos um povo pequeno, um povo tolo, ganancioso, bárbaro e cruel? Você sabe, Tenente? Na cidade árabe de Córdoba havia duas milhas de iluminação pública nas ruas, quando Londres era ainda um vilarejo.
Lawrence ao menos sabia. Nós esquecemos.
A verdade a ser melhor aprofundada é que a Primeira Guerra jamais acabou. Ela corre pelo mundo e vai se transfigurando em outras. Esperamos (sempre) que não seja a última.
Nossa incapacidade, porém, resta a mesma: falar de nós mesmos não está jamais na pauta. As nossas mentiras, o nosso descompromisso. A nossa ignorância antropológica. A sistêmica barbárie dos nossos hematófogos revela a perversidade das inversões.
Inversões são a tônica do momento.
Por isso, no século XXI, as guerras e massacres patrocinados pelo Ocidente — ativa e passivamente — são feitos por velhos sem cautela, e os jovens, sem coragem, vão perdendo a esperança.
Não percamos — nenhuma, nem outra.