As Forças Armadas entre o Brasil e os Estados Unidos
por Fernando Marcelino
Uma das formas mais eficazes que os EUA exercem sua hegemonia no Brasil é por meio de sua influência sobre as Forças Armadas brasileiras. Existe todo um esforço estratégico dos EUA para que as Forças Armadas do Brasil vejam os EUA como a “estrela-guia”, por meio de parcerias tecnológicas e formação de pessoal. Sabe-se bem o papel dos EUA no golpe de 1964 e na sustentação do regime militar brasileiro, até o ponto em que o Brasil passou a buscar relativa autonomia na política externa e competir com os EUA na área energética e de defesa. Na década de 1980, o Brasil se tornou um dos dez maiores exportadores mundiais de equipamento militar. A carteira de exportações do setor de defesa brasileiro girava em torno de US$ 1,5 bilhão. Os tanques e veículos blindados da Engesa, como o Cascavel, o Tamoyo e o Urutu; o lança-foguetes Astro II, da Avibrás; os aviões Bandeirante, Xingu e Brasília, da Embraer; e os fuzis, pistolas e explosivos da Imbel estavam presentes nas Forças Armadas de mais de 30 países de América do Sul, Oriente Médio e Ásia.
Na década de 1990, o Brasil passa a sucatear as Forças Armadas ao adotar a Cartilha do Consenso de Washington, quando privatizou 119 estatais, muitas da área da defesa. Sob pressão do aparelho industrial-militar dos EUA, faliram ou foram privatizadas Imbel, Engesa, Avibrás e Embraer, fazendo com que o país deixasse de produzir seus armamentos e realizando o desmonte progressivo do setor de defesa nacional.
Para responder às vulnerabilidades para a soberania brasileira, nos primeiros governos Lula foi elaborada a Estratégia de Defesa Nacional, com projetos para modernização das forças armadas e uma institucionalidade regional apontando para maior autonomia militar dos EUA. Como resposta, os EUA organizaram a Operação Lava-Jato, voltada a desestruturação da economia brasileira e ao desmonte de empresas estrategicamente envolvidas nos projetos industriais-militares brasileiros, como a Eletronuclear e a Odebrecht Defesa.
Desde o golpe contra Dilma, em 2016, a influência estratégica dos EUA sob as Forças Armadas brasileiras cresceu substancialmente. Com Temer e Bolsonaro, ocorre uma série de privatizações, falências e desestatizações que assolaram empresas estratégicas para o setor de defesa brasileiro, aprofundando a desnacionalização do controle da base produtiva que compõe e supre as Forças Armadas Brasileiras. Foram realizados uma série de novos contratos com empresas norte-americanas de defesa através do Foreign Military Sales (FMS), em detrimento de investimentos na indústria nacional de defesa.

Também foi autorizado o ingresso de militares dos EUA para exercícios conjuntos com o Exército e com a Polícia Federal. Em 2017, por meio do Comando Sul, os EUA participaram de exercício militar na Amazônia a convite do Brasil, com a justificativa de preparação para atividades humanitárias, como receber migrantes, e combater delitos transnacionais, como o tráfico de drogas. Em 2020, ocorreu um novo treinamento na região, dessa vez estritamente militar, partindo da hipótese de guerra entre dois países amazônidas como Brasil e Venezuela. Contabilizou-se 15 exercícios militares com a participação do Brasil e dos Estados Unidos entre 2016 e 2022. Entre os anos de 2020 e 2023, 134 militares brasileiros fizeram cursos nos EUA. Dentre esses, 97 eram oficiais superiores. Em 2019, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), firmado no governo Bolsonaro para viabilizar o uso da Base de Alcântara, permitiu novas modalidades de acesso militar a instalações sensíveis sob controle brasileiro.
Henry Kissinger dizia que “ser inimigo dos EUA pode ser perigoso, mas ser amigo é fatal”. Esta lição do diplomata norte-americano não foi levada a sério pelas Forças Armadas. Agora, diante da guerra comercial promovida pelos EUA, setores militares se dizem muito preocupados com a escalada na guerra comercial e retórica entre Lula e Trump, chegando a pressionar que o Brasil siga um caminho de vassalagem e subserviência. Aponta-se que não conseguiriam viver sem os EUA e temem que sanções possam gerar um colapso operacional em todo sistema de defesa. Pouco se importam com a dependência de equipamentos, munições e sistemas tecnológicos dos EUA, considerando-a inevitável e até desejável. Acham natural que o Brasil se alinhe automaticamente aos EUA, mesmo que isso atente contra os interesses nacionais, pois eles estariam lutando pelos “valores ocidentais”. Alguns até defendem que os EUA possam assumir o controle militar total de Fernando de Noronha e da Base Aérea de Natal, com acesso irrestrito às infraestruturas e o “direito histórico de retorno operacional”, pelos investimentos realizados pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e o período da Guerra Fria.
Acreditam que sistemas estratégicos como radares, comunicação criptografada, aviões caça, embarcações navais e até munições devem ser mesmo dos EUA. Dizem que o F-39 Gripen E/F está equipado com motor fabricado nos EUA pela G&E, além de outros componentes e armamentos, a Embraer depende de peças vindas dos EUA, existe risco de suspensão do envio dos 12 helicópteros Black Hawk comprados por US$ 960 milhões pelo Brasil, os 222 mísseis FGM-148F Javelin e as 33 lançadores encomendados ao custo de US$ 74 milhões. E ainda inviabilizar a pretensão de compra de mísseis antiaéreos Stinger.
Como se vê, o poder do imperialismo e de forças transnacionais se reflete de diferentes formas nas Forças Armadas brasileiras. Na esfera ideológica, conseguem cooptar militares a ponto de acreditar que os EUA estão muito interessados no bem-estar e desenvolvimento do Brasil. Só, diante da atual situação, agora se encontram diante de um dilema: seguem alinhadas aos interesses dos EUA, em detrimento da soberania nacional, ou adotam uma postura efetivamente nacionalista, capaz de superar a dependência e a intervenção política dos EUA?

As Forças Armadas são um dos pilares da soberania nacional e um importante vetor do desenvolvimento industrial, no setor metal-mecânica, química, siderúrgica, eletrônica, motores, combustíveis, etc. Só que, sem reorganizar a estrutura das Forças Armadas – indústria, doutrina, parcerias, planejamento e orçamento – não será possível reverter a acelerada desconstrução da capacidade de defesa nacional. A soberania militar prevê setores estratégicos para a defesa nacional, destacando-se a indústria bélica, o setor naval, aeroespacial, nuclear e cibernético. Atualmente, destaca-se a necessidade estratégica desenvolver tecnologias para guerra assimétrica, destacando-se a produção nacional em grande escala de drones, armamentos portáteis anti-tanque, anti-avião e anti-drone, modernização dos blindados Guarani, compra de aviões e helicópteros, sistema de monitoramento de fronteiras, retomada do programa de mísseis, conquistar a soberania digital com uma “nuvem brasileira” e instrumentos próprios de georeferenciamento e comunicação. Para tudo isso, é preciso aprender a viver sem a dependência financeira e militar dos EUA e desbloquear as travas do crescimento econômico, o que permitirá incrementar gradualmente o orçamento das Forças Armadas para garantir sua modernização soberana.
Enfim, o Brasil precisa de uma estratégia de desenvolvimento nacional no mais alto nível de tomada de decisão, capaz de utilizar-se de todos os instrumentos do poder nacional para apoiar uma visão estratégica na busca dos objetivos nacionais. E as Forças Armadas são essenciais nesta estratégia de maior soberania e autossuficiência brasileira. Trata-se de um dos pontos cruciais que está em jogo com a guerra comercial dos EUA contra o Brasil.
Fernando Marcelino é analista internacional, doutor em sociologia na UFPR e militante do MPM – movimento Popular por Moradia
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