As ferrovias no Brasil III

por José Manoel Ferreira Gonçalves

III – O que fazer pelos trilhos

Rumo aos Trilhos do Futuro: Um Plano Estratégico para Revitalizar as Ferrovias Brasileiras

Após analisarmos em profundidade os problemas que assolam o sistema ferroviário brasileiro e as inúmeras vantagens que ele intrinsecamente oferece, torna-se imperativo traçar um plano estratégico robusto e ambicioso para reverter o cenário atual e impulsionar o setor rumo a um futuro próspero e eficiente. Trata-se de um conjunto abrangente de sugestões de soluções por meio de rotas estratégicas, mecanismos de atração de investimentos e parcerias internacionais, visando transformar o transporte ferroviário em um pilar fundamental do desenvolvimento nacional, com fretes mais acessíveis, riscos minimizados e compromisso com a preservação ambiental.

Pilares Estratégicos para a Revitalização Ferroviária:

A transformação do sistema ferroviário brasileiro exige uma abordagem multifacetada, assentada em pilares estratégicos interconectados e complementares:

1. Modernização e Expansão da Infraestrutura: A Base da Mudança

A superação da infraestrutura deficiente e envelhecida é o ponto de partida para qualquer plano de revitalização. As ações prioritárias incluem:

  • Programa Nacional de Modernização da Malha Existente: Implementar um programa de grande escala para a modernização da malha ferroviária existente, priorizando a recuperação de trechos críticos, a substituição de trilhos desgastados, a renovação de dormentes e a atualização de sistemas de sinalização e controle. Este programa deve ser contínuo e contar com metas claras e indicadores de desempenho.
  • Expansão Seletiva e Estratégica da Malha: Expandir a malha ferroviária de forma seletiva e estratégica, priorizando corredores de alta demanda e rotas que conectem centros produtores a portos, centros de consumo e outros modais de transporte. A expansão deve ser planejada de forma integrada com a matriz de transportes nacional, evitando sobreposições e maximizando a eficiência da rede.
  • Implantação Gradual de Bitola Mista e Padronização: Iniciar um programa gradual de implantação de bitola mista (métrica e larga) em corredores estratégicos, visando permitir a circulação de trens de bitola métrica e larga na mesma via. Em longo prazo, buscar a padronização para bitola larga (ou bitola padrão), que oferece maior capacidade e eficiência, em novas construções e grandes modernizações.
  • Eletrificação de Corredores de Alta Demanda: Eletrificar corredores ferroviários de alta demanda, especialmente aqueles destinados ao transporte de cargas de alto valor agregado e ao transporte de passageiros em áreas metropolitanas e interurbanas. A eletrificação reduz os custos operacionais, diminui as emissões de poluentes e permite a utilização de fontes de energia renovável.
  • Construção de Contornos Ferroviários em Áreas Urbanas: Construir contornos ferroviários em áreas urbanas densamente povoadas, desviando o tráfego de trens de carga para fora dos centros urbanos. Essa medida reduz o congestionamento, melhora a segurança, diminui a poluição sonora e libera espaço urbano para outros usos.
  • Investimento em Terminais Intermodais Eficientes: Investir na construção e modernização de terminais intermodais, que facilitem a integração entre ferrovias, rodovias, hidrovias e portos. Os terminais intermodais devem ser equipados com tecnologias modernas de transbordo, armazenagem e gestão de cargas, garantindo a fluidez e eficiência das cadeias logísticas.

2. Reforma Regulatória e Institucional: Desburocratização e Segurança Jurídica

Um ambiente regulatório complexo e burocrático sufoca o desenvolvimento do setor ferroviário. A reforma regulatória e institucional é crucial para destravar investimentos e promover a modernização:

  • Simplificação e Desburocratização do Marco Regulatório: Revisar e simplificar o marco regulatório do setor ferroviário, eliminando redundâncias, excesso de burocracia e normas desatualizadas. O objetivo é criar um ambiente regulatório mais claro, previsível e favorável ao investimento privado.
  • Agilidade nos Processos de Licenciamento Ambiental: Agilizar os processos de licenciamento ambiental para projetos ferroviários, sem comprometer a rigorosidade e a qualidade das análises ambientais. Criar um “guichê único” para o licenciamento, com prazos definidos e acompanhamento transparente dos processos.
  • Celeridade nas Concessões e Repactuações Contratuais: Agilizar os processos de concessão de novas ferrovias e de repactuação de contratos existentes, garantindo segurança jurídica e condições atrativas para os investidores. Adotar modelos de concessão flexíveis e adaptados às características de cada projeto, considerando riscos e retornos de forma equilibrada.
  • Criação de uma Agência Reguladora Forte e Independente: Fortalecer a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), conferindo-lhe maior autonomia, recursos e capacidade técnica para regular e fiscalizar o setor ferroviário de forma eficaz e independente. A agência deve atuar como um árbitro imparcial, garantindo a concorrência justa, a qualidade dos serviços e a proteção dos usuários.
  • Incentivo à Concorrência e Acesso à Malha: Promover a concorrência no setor ferroviário, incentivando a entrada de novos operadores e garantindo o acesso não discriminatório à malha ferroviária para diferentes empresas. A concorrência estimula a inovação, a eficiência e a redução de custos.

3. Atração de Investimentos Estatais e Privados: Financiando o Futuro Ferroviário

A revitalização ferroviária demanda investimentos maciços, que devem ser provenientes tanto do setor público quanto do privado. Estratégias para atrair investimentos incluem:

  • Aumento do Investimento Público em Infraestrutura Ferroviária: O governo federal deve aumentar significativamente os investimentos em infraestrutura ferroviária, destinando recursos do orçamento geral da União, de fundos setoriais e de outras fontes de financiamento público. O investimento público é fundamental para viabilizar projetos de longo prazo, reduzir o risco para investidores privados e sinalizar o compromisso do Estado com o setor.
  • Modelos de Parceria Público-Privada (PPP) Atraentes: Utilizar modelos de Parceria Público-Privada (PPP) para atrair investimentos privados para a construção, modernização e operação de ferrovias. Os modelos de PPP devem ser bem estruturados, com divisão clara de riscos e responsabilidades entre o setor público e o privado, e oferecer retornos atrativos para os investidores.
  • Criação de Fundos de Investimento em Infraestrutura Ferroviária: Criar fundos de investimento dedicados ao setor ferroviário, com participação de investidores institucionais, fundos de pensão, bancos de desenvolvimento e investidores estrangeiros. Os fundos de investimento podem captar recursos no mercado de capitais e direcioná-los para projetos ferroviários de longo prazo.
  • Incentivos Fiscais e Tributários para Investimentos Ferroviários: Conceder incentivos fiscais e tributários para empresas que invistam em projetos ferroviários, como isenção ou redução de impostos sobre a importação de equipamentos, sobre a construção de infraestrutura e sobre a operação de ferrovias. Os incentivos fiscais podem reduzir os custos dos projetos e aumentar a rentabilidade para os investidores.
  • Emissão de Títulos Verdes (Green Bonds) para Projetos Sustentáveis: Emitir títulos verdes (green bonds) para financiar projetos ferroviários que contribuam para a sustentabilidade ambiental, como a eletrificação de ferrovias, a construção de terminais intermodais eficientes e a modernização da frota com locomotivas menos poluentes. Os títulos verdes atraem investidores preocupados com questões ambientais e podem oferecer condições de financiamento mais favoráveis.

4. Rotas Estratégicas e Corredores de Desenvolvimento:

A definição de rotas estratégicas e corredores de desenvolvimento é essencial para direcionar os investimentos e maximizar o impacto das ferrovias na economia nacional. Algumas rotas prioritárias incluem:

  • Ferrogrão: Viabilizar a Ferrogrão, ferrovia fundamental para o escoamento da produção agrícola do Centro-Oeste para os portos do Norte, reduzindo custos logísticos e aumentando a competitividade do agronegócio brasileiro. Superar os desafios ambientais e de licenciamento com soluções inovadoras e sustentáveis.
  • Ferrovia Norte-Sul (Extensão e Duplicação): Concluir a extensão da Ferrovia Norte-Sul até o Porto de Itaqui (MA) e duplicar trechos existentes, consolidando este corredor estratégico para o transporte de cargas diversas e conectando regiões produtoras do Centro-Oeste, Sudeste e Nordeste.
  • Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL): Concluir a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), que ligará o interior da Bahia ao Porto de Ilhéus, impulsionando o desenvolvimento do Nordeste e facilitando o escoamento de minério de ferro e outros produtos.
  • Corredores para Mineração e Indústria: Desenvolver corredores ferroviários dedicados ao transporte de minério de ferro, bauxita, carvão e outros minerais, conectando minas a indústrias e portos. Modernizar e expandir as ferrovias já existentes e construir novas linhas onde necessário.
  • Trens Regionais e Metropolitanos: Implementar projetos de trens regionais e metropolitanos em áreas urbanas densamente povoadas e em regiões metropolitanas, oferecendo alternativas de transporte público eficientes, confortáveis e sustentáveis para a população. Priorizar projetos em grandes centros urbanos e em regiões turísticas.
  • Conexões Ferroviárias a Portos e Aeroportos: Construir e modernizar conexões ferroviárias a portos marítimos e fluviais e a aeroportos, facilitando o transbordo de cargas e passageiros entre os diferentes modais de transporte. A integração ferroviária aos portos e aeroportos é fundamental para otimizar as cadeias logísticas e reduzir os custos de transporte.

5. Inovação, Tecnologia e Sustentabilidade: Ferrovias Inteligentes e Verdes

A modernização do setor ferroviário deve ser acompanhada pela adoção de tecnologias inovadoras e práticas sustentáveis:

  • Implementação de Sistemas de Sinalização e Controle Modernos: Substituir sistemas de sinalização e controle obsoletos por tecnologias modernas, como o CBTC (Communication-Based Train Control) e o ERTMS (European Rail Traffic Management System), que aumentam a segurança, a capacidade e a eficiência da malha ferroviária.
  • Digitalização e Automação de Operações: Investir em digitalização e automação de operações ferroviárias, como sistemas de gestão de tráfego, monitoramento de ativos, manutenção preditiva e plataformas digitais para gestão de cargas e passageiros. A digitalização e automação reduzem custos, aumentam a eficiência e melhoram a experiência do usuário.
  • Frota de Locomotivas e Vagões Modernos e Eficientes: Renovar a frota de locomotivas e vagões, adquirindo equipamentos modernos, eficientes em termos de consumo de energia e menos poluentes. Incentivar a utilização de locomotivas elétricas e de combustíveis alternativos, como o biodiesel e o hidrogênio verde.
  • Práticas de Manutenção Predial e Preventiva: Adotar práticas de manutenção predial e preventiva, baseadas em monitoramento contínuo e análise de dados, para garantir a segurança e a disponibilidade da infraestrutura ferroviária. A manutenção preditiva e preventiva reduz custos de manutenção, prolonga a vida útil dos ativos e minimiza o risco de falhas e interrupções.
  • Soluções Sustentáveis para a Construção e Operação de Ferrovias: Adotar soluções sustentáveis em todas as etapas da construção e operação de ferrovias, como o uso de materiais reciclados, a gestão eficiente de recursos hídricos, a redução do consumo de energia, a mitigação de impactos ambientais e a compensação ambiental de áreas afetadas.

6. Cooperação Internacional e Parcerias Estratégicas:

A cooperação internacional e as parcerias estratégicas podem acelerar o desenvolvimento do setor ferroviário brasileiro, trazendo expertise, tecnologia e investimentos. Potenciais parceiros e áreas de cooperação incluem:

  • China: Parceria com empresas chinesas com vasta experiência em construção e operação de ferrovias de alta velocidade e de carga, aproveitando o interesse chinês em investir em infraestrutura na América Latina e em garantir o escoamento de commodities brasileiras.
  • União Europeia (Alemanha, França, Espanha): Cooperação com países europeus líderes em tecnologia ferroviária, como Alemanha, França e Espanha, para a transferência de know-how, a modernização da indústria ferroviária brasileira e o desenvolvimento de projetos de trens de alta velocidade e regionais.
  • Japão e Coreia do Sul: Parceria com Japão e Coreia do Sul, países com alta expertise em sistemas de transporte ferroviário eficientes e tecnológicos, para a implementação de soluções inovadoras, a otimização da gestão e operação de ferrovias e o desenvolvimento de projetos de mobilidade urbana sobre trilhos.
  • Canadá e Austrália: Cooperação com Canadá e Austrália, países com vasta experiência em transporte ferroviário de minérios e commodities agrícolas em longas distâncias, para a troca de conhecimentos, a adoção de melhores práticas e o desenvolvimento de corredores de exportação eficientes.
  • Programas de Financiamento e Cooperação Técnica Internacional: Buscar acesso a programas de financiamento e cooperação técnica oferecidos por organismos multilaterais, bancos de desenvolvimento e agências de cooperação internacional, para apoiar projetos ferroviários e fortalecer a capacidade institucional do setor.

Rumo a um Futuro Ferroviário Brilhante:

A revitalização do sistema ferroviário brasileiro é um desafio complexo, mas absolutamente essencial para o futuro do país. A implementação deste plano estratégico, com seus pilares interconectados e ambiciosos, tem o potencial de transformar as ferrovias em um motor de desenvolvimento econômico, social e ambiental. Ao modernizar a infraestrutura, reformar a regulamentação, atrair investimentos, priorizar rotas estratégicas, inovar tecnologicamente e buscar parcerias internacionais, o Brasil poderá trilhar um caminho de progresso sobre trilhos, com fretes mais baratos, riscos minimizados, um meio ambiente preservado e um futuro mais próspero e conectado para todos os brasileiros. A hora de agir é agora, para que os trilhos do futuro nos conduzam a um Brasil mais forte e desenvolvido.

Um Brasil nos Trilhos da Transformação e do Progresso Sustentável

Ao longo deste extenso artigo, mergulhamos nas profundezas do sistema ferroviário brasileiro, navegando pelas águas turbulentas de seus problemas históricos e contemporâneos, e vislumbrando o horizonte promissor de suas vantagens intrínsecas e potencial inexplorado. Essa jornada analítica nos conduziu a uma compreensão abrangente e multifacetada do setor, revelando tanto os desafios urgentes que demandam soluções imediatas quanto as oportunidades estratégicas que clamam por investimentos e visão de futuro.

Inicialmente, confrontamo-nos com a dura realidade de uma infraestrutura deficiente e envelhecida, herança de décadas de negligência e subinvestimento. A malha ferroviária, em grande parte métrica e subutilizada, clama por modernização e expansão, enquanto um complexo emaranhado regulatório e burocrático sufoca a iniciativa privada e retarda o avanço do setor. A falta de recursos, a insegurança jurídica e as incertezas macroeconômicas completam o quadro desafiador, pintando um cenário de estagnação e oportunidades perdidas.

Contudo, ao perscrutarmos mais a fundo, a luz da esperança irrompe com força inabalável. As vantagens do transporte ferroviário, outrora ofuscadas pelos problemas, revelam-se em toda a sua magnitude e relevância estratégica. Eficiência, capacidade, custos competitivos, sustentabilidade ambiental, benefícios sociais e estímulo ao desenvolvimento regional emergem como pilares inabaláveis, sustentando a tese de que o trem não é apenas um modal de transporte, mas sim um vetor de transformação socioeconômica e ambiental para o Brasil.

Diante desse dualismo – problemas prementes e potencialidades latentes – ergue-se a necessidade imperativa de ação. O plano estratégico detalhado neste artigo surge como um farol, guiando-nos por um caminho de revitalização e progresso. A modernização da infraestrutura, a reforma regulatória, a atração de investimentos, a definição de rotas estratégicas, a adoção de tecnologias inovadoras e a busca por parcerias internacionais configuram-se como os pilares de sustentação de um futuro ferroviário brilhante.

A Ferrogrão, a FIOL, a Ferrovia Norte-Sul, os trens regionais e metropolitanos, a eletrificação da malha, os terminais intermodais eficientes – cada projeto, cada iniciativa, representa um passo rumo à concretização do potencial ferroviário brasileiro. A cooperação com países experientes, o investimento em capital humano qualificado e a adoção de práticas sustentáveis complementam essa visão, construindo um ecossistema ferroviário robusto, moderno e alinhado com os desafios do século XXI.

Em suma, este artigo não se limitou a diagnosticar os males do presente, nem a apenas sonhar com um futuro distante. Ele buscou, acima de tudo, apresentar um roteiro prático, detalhado e exequível para a transformação do sistema ferroviário brasileiro. A revitalização das ferrovias não é uma tarefa fácil, nem um projeto de curto prazo. Requer visão estratégica, planejamento rigoroso, investimentos consistentes, vontade política e engajamento de todos os setores da sociedade. No entanto, os benefícios potenciais são imensuráveis, abrangendo desde a redução dos custos logísticos e o aumento da competitividade da economia até a melhoria da qualidade de vida da população e a preservação do meio ambiente.

O Brasil, com suas dimensões continentais e suas crescentes demandas por transporte eficiente e sustentável, não pode mais negligenciar o potencial transformador das ferrovias. É hora de trilharmos, com determinação e visão de futuro, o caminho da revitalização ferroviária, construindo um sistema moderno, eficiente, seguro e sustentável, que impulsione o desenvolvimento do país e nos conduza a um futuro de progresso compartilhado e prosperidade duradoura. A sinfonia do desenvolvimento brasileiro clama por um maestro que regesse os trilhos da transformação, e este artigo, esperamos, possa contribuir para afinar os instrumentos e inspirar a ação, rumo a um Brasil nos trilhos do futuro.

José Manoel Ferreira Gonçalves é jornalista, cientista político, advogado e doutor em engenharia. Dedica-se ao estudo da ecologia e meio ambiente, bem como aos modais de transporte, notadamente o ferroviário, para cuja bandeira milita.

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Last Update: 07/03/2025