As Estórias do Livre-Cambismo: Marx e Trump

por Nathan Caixeta e Luiz Gonzaga Belluzzo

No livro Avenças e Desavenças da Economia arriscamos digressões sobre as Estórias dos “Equilibristas”, apresentando as narrativas “criadas” para justificar e legitimar as hipóteses do naturalismo, do individualismo, do racionalismo e do equilíbrio, que estão na base do monólito que carrega o nome de “ciência econômica”.

Consideramos pertinente, sob os agouros protecionistas do Trumpismo, tratar das Estórias do Livre-Cambismo.

Invocamos a conferência proferida por Karl Marx em Bruxelas em 7 de janeiro de 1848 (meses antes da publicação do Manifesto), publicada sob o título “On The Question Free Trade” e que se dirigiu à Association Démocratique.

Nas romarias dos nossos liberais, curiosos com o pensamento marxista, o texto mal lido, se é que lido, e é erroneamente tratado como uma defesa de Marx ao livre-comércio.

Nos idos de 1815, O Império Britânico impôs tarifas de importação aos cereais, pretendendo apoiar a produção e o abastecimento interno, especialmente de centeio, malte e trigo. O Bispo Malthus e David Ricardo carregaram suas penas na análise das Corn Laws.

No caso de Malthus, impunha-se a lei da população, segundo a qual a livre entrada de cereais rebaixaria os salários dos trabalhadores além do necessário para sua subsistência, impactando no consumo dos cereais produzidos internamente.

O economista Ricardo em sua habitual sapiência supôs o contrário: a introdução de tarifas de importação produziria forçosamente uma elevação geral de preços, pressão sobre os salários e queda nas taxas de lucro dos capitalistas, obrigando os trabalhadores à fome e os capitalistas a abdicarem de sua “vocação” para a especialização na produção de bens industriais e deslocarem capitais para a decadente produção agrícola.

Ao longo das décadas de 1830 e 1840, a expansão da produção industrial inglesa, a inigualável mobilização de força de trabalho dirigida à manufatura e o crescimento do comércio de bens e capitais a partir da City, incitaram o movimento abolicionista, que chegaria ao êxito em 1846 com a vitória da Anti-Corn Law League, movimento que derrubou às leis de importação de cereais e deu origem a revista The Economist.

A Conferência de Marx em Bruxelas, meses antes de seu exílio junto a Engels, já sob o espectro conservador que rondava a Europa, destinou-se a explicitar as contradições do livre-comércio inerentes ao desenvolvimento do que mais tarde chamaria Regime do Capital.

Como Engels destacaria no prefácio de 1888 à edição inglesa da Conferência de Marx:

“Foi sob o amparo da proteção que o sistema da indústria moderna – produção por meio de maquinário movido a vapor – foi criado e desenvolvido na Inglaterra durante o último terço do século XVIII. E, como se a proteção tarifária não fosse suficiente, as guerras contra a Revolução Francesa ajudaram a garantir à Inglaterra o monopólio dos novos métodos industriais. Por mais de 20 anos, os navios de guerra ingleses isolaram os rivais industriais da Inglaterra de seus respectivos mercados coloniais, enquanto abriam esses mercados à força para o comércio inglês. A secessão das colônias sul-americanas do domínio de suas matrizes europeias, a conquista pela Inglaterra de todas as colônias francesas e holandesas que valiam a pena, a subjugação progressiva da Índia transformaram os povos de todos esses imensos territórios em clientes dos produtos ingleses.”

O “monopólio virtual do comércio mundial” constituído sob os cuidados do protecionismo inglês desde a segunda metade do século XVIII, assegura Engels, seguindo Marx, não se apropriou do discurso do velho mercantilismo, mas de mecanismos capitalistas de concorrência.

No subterrâneo das forças gerais de desenvolvimento do capitalismo, a concorrência opera, em simultâneo, a reequação do espaço-tempo, das formas de produzir e acumular, e das condições de trabalho. Isto é: opera a fusão (sobretudo financeira) de interesses e capitais, a dispersão e desvalorização do trabalho, segundo a celeridade do que inadvertidamente chamamos hoje de globalização.

Marx registra no Manifesto Comunista, no mesmo ano de 1848, os poderes da globalização postos em movimento pela Burguesia Industrial e Financeira:

“Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, cujos produtos se consomem não somente no próprio país, mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações… Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente de civilização mesmo as nações mais bárbaras… Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama de civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança. A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população do embrutecimento da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, subordinou os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente. A burguesia suprimiu cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária. A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto.”

O resultado do livre-comércio, ensinou a Economia Política e prosseguiu ensinando a Teoria Econômica, é a generalização dos ganhos de produtividade, a poupança de mão de obra e capital que, enfim, se traduziria em salários adequados à subsistência dos que trabalham e lucros “normais” aos capitalistas.

Os economistas ontem, como hoje – e aliás, ainda hoje porque ontem -, “consideram o preço do trabalho no momento de sua troca com outras mercadorias. Mas eles ignoram completamente o momento em que o trabalho realiza sua própria troca com o capital.”

Como consequência, o Free Trade entregaria, em tese, a queda dos salários nominais e a redução geral dos preços, convertendo-se pela mágica mecanicista do pensamento econômico em elevação dos salários reais. Entretanto, o “pequeno inconveniente”, aponta Marx, instalado pela relação social concreta entre capital e trabalho desobriga o movimento real de seu dever mecânico.

O livre-comércio não é oposto simetricamente ao protecionismo, mas ambos existem como normas específicas da concorrência entre capitais no espaço e no tempo. O movimento concreto destas “formas de aparecer” da concorrência leva ao “crescimento do capital produtivo” e:

“…implica a acumulação e a concentração de capital. A centralização do capital envolve uma maior divisão do trabalho e um maior uso de maquinário. A maior divisão do trabalho destrói a habilidade especial do trabalhador e, ao substituir esse trabalho especializado por um trabalho que qualquer um pode realizar, aumenta a concorrência entre os trabalhadores. Essa concorrência se torna mais acirrada à medida que a divisão do trabalho permite que um único trabalhador faça o trabalho de três.”

Dúvidas atiçam nossas cacholas: não é isso que se passou na longa marcha que destronou os habilidosos manufatureiros, os aplicados trabalhadores fabris do fordismo, e hoje se passa com os igualmente habilidosos designers, engenheiros da computação e tutti quanti na presença crescente da geniosa Inteligência Artificial?

Com razão, mentes atiladas ou não tem se preocupado com os impactos das medidas protecionistas afainadas por Donald Trump e sua turma de bilionários das Bigh-Techs. O “Tarifaço” derrubou os preços das ações em todos os mercados. O medo é que disto se instale uma intensificação dos conflitos e não apenas no âmbito comercial, espalhando prejuízos para todas as nações que gravitam o sistema dólar.

No longo horizonte de eventos que se seguiram à liberalização e desregulamentação dos mercados capitaneada pela hegemonia norte-americana e que concentrou sua máxima energia durante e após a Grande Crise Financeira de 2008, formaram-se outras órbitas de poder industrial, tecnológico, militar e, sobretudo, monetário.

Trump e os barões da tecnologia assistem ao declínio da força gravitacional do dólar, assim como se beneficiaram largamente da fusão não-intencional entre a ascensão chinesa e a decadência industrial norte-americana.

Os chineses, cultivando os ensinamentos de Confúcio, peregrinam no culto à paciência e à solidariedade com as nações e povos há décadas colonizados pelas forças criadoras da dependência econômica, política e cultural, que se fundiram para a criação dos 3 mil bilionários que hoje engolem o ar dos mais de 1,1 bilhão de pobres e deserdados, para não falar dos mais de 1,5 bilhão de trabalhadores precários que caminham céleres para pobreza.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990). Belluzzo é formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e doutor em economia pela Unicamp. Fundador da Facamp e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é autor dos livros “Os Antecedentes da Tormenta”, “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, e coautor de “Depois da Queda, Luta Pela Sobrevivência da Moeda Nacional”, entre outros. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. Em 2005, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano (Prêmio Juca Pato).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 09/05/2025