As esquerdas e a urgência da questão ambiental
por Erick Kayser
Ainda que existam em alguns países uma direita moderada sensível as questões ambientais, ela é muito mais exceção do que norma. Os setores industriais poluentes e extrativistas tem na direita (seja ela liberal ou autoritária) sua principal sustentação política para frear mudanças significativas em legislações que possam afetar seus lucros. Assim, cabe as esquerdas, em suas variadas configurações, a responsabilidade de enfrentar a questão ambiental com a devida urgência.
As mudanças climáticas que passaram a afetar todo o planeta, forçaram a agenda ambiental a ganhar maior visibilidade nos debates públicos. Mas avanços ainda são muito tímidos, dado a velocidade das transformações ambientais, onde tragédias como grandes enchentes e secas prolongadas, tornam-se mais frequentes. Mesmo que ao redor do mundo sejam os partidos identificados com a esquerda (em seu sentido mais amplo) que se mostram mais sensíveis a agenda, o quadro geral é complexo e marcado por contradições.
A esquerda ocidental, especialmente na Europa, frequentemente prioriza debates sobre igualdade social e direitos trabalhistas, mas falha em traduzir a emergência climática em medidas concretas e radicais. Enquanto discursos sobre sustentabilidade e justiça climática permeiam suas plataformas, a implementação de políticas efetivas esbarra em contradições estruturais. A falta de coerência entre teoria e prática é evidente: partidos de esquerda muitas vezes cedem a interesses econômicos de curto prazo para garantir governabilidade, como visto em alianças com setores industriais poluentes. A dificuldade em romper com o paradigma do crescimento econômico infinito, mesmo entre partidos historicamente de esquerda, reflete uma contradição ideológica.
Por outro lado, a China, mesmo sob críticas internacionais, tem apresentado avanços rápidos em áreas como energia renovável e redução de emissões, que podem ser atribuídas em grande parte à sua economia planificada. O país é hoje o maior investidor em energia solar e eólica no mundo, além de liderar a produção de veículos elétricos. A centralização do poder permite a rápida alocação de recursos e a imposição de metas nacionais para implementar políticas ambientais ambiciosas, como o compromisso de alcançar a neutralidade de carbono até 2060. Esse modelo, apoiado em controle estatal sobre setores estratégicos, evita os entraves burocráticos e lobbies corporativos que paralisam iniciativas no Ocidente.
O “segredo” chinês reside na capacidade de integrar objetivos ambientais a planos quinquenais, usando o aparato estatal para direcionar investimentos e regulamentações. Enquanto a esquerda ocidental debate a transição ecológica em meio a conflitos entre crescimento e sustentabilidade, a China impõe mudanças “pelo alto”, mesmo que isso signifique sacrificar autonomia local ou liberdades civis. Portanto, a eficácia desse modelo depende de um contexto autoritário, incompatível com as democracias ocidentais. Para a esquerda global, o desafio é conciliar a urgência ambiental com valores democráticos — algo que exige não apenas inovação política, mas também uma ruptura com a lógica capitalista que permeia até mesmo suas próprias estruturas.
Na América Latina temos um cenário não livre de contradições, mas com grande potencialidade para liderar uma renovação política das esquerdas, incorporando um ambientalismo radical ou ecossocialismo com uma política democrática.
Durante a chamada “onda rosa”, quando uma série de governos de esquerda governaram países na América do Sul na primeira década do século XXI, a Bolívia de Evo Morales se destacou naquele momento pela centralidade dado ao tema ambiental. Com um forte apelo ao pensamento indígena e à “Pachamama”, a Constituição de 2009 reconheceu os direitos da natureza. Contudo, na prática, os governos do Movimento ao Socialismo (MAS), se distanciou de seu programa político ambiental, com a ampliação da fronteira extrativista (hidrelétricas, lítio, gás natural) e projetos como a estrada no TIPNIS (território indígena) que causaram forte resistência. Nos últimos anos, o governo de Luis Arce segue com políticas de industrialização do lítio como aposta para o futuro, com parcerias internacionais (China e Rússia), com impacto ambiental ainda controverso.
Atualmente, a Colômbia de Gustavo Petro tem assumido uma posição de vanguarda. Mesmo enfrentando um parlamento hostil, seu governo tem buscado levar adiante políticas de reflorestamento, direitos para a Amazônia, fortalecimento de consultas com povos indígenas, proposta de transição energética e fim da dependência do petróleo. Seria fruto desta dependência econômica do petróleo que, por exemplo, a Venezuela de Hugo Chávez (e depois com Nicolás Maduro) jamais a questão ecológica teve algum nível de prioridade.
No Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT) carrega em sua história a herança do ambientalismo de base forjado por lideranças como Chico Mendes, que já na década de 1980 insistia na ideia de que a conservação da floresta não podia prescindir da justiça social. Foi no seringal, na articulação entre seringueiros, ribeirinhos e populações indígenas, que se consolidou uma visão de desenvolvimento solidário, capaz de unir preservação e modos de vida tradicionais. Hoje, diante da urgência das mudanças climáticas e das tragédias ambientais que se repetem em cidades como São Paulo, Porto Alegre, Petrópolis e Manaus, o PT tem a oportunidade e o dever de traduzir essa matriz histórica em políticas de largo alcance.
No terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a pauta ambiental ganhou uma visibilidade renovada. Em discursos que percorrem desde fóruns internacionais até palanques regionais, Lula tem sublinhado o papel estratégico da Amazônia não apenas como “pulmão do mundo”, mas como território de milhares de trabalhadores e trabalhadoras cujo sustento depende diretamente do equilíbrio ecológico. Ao destacar que quase toda a eletricidade do país provém de fontes limpas e ao apresentar metas ambiciosas de redução de emissões, seu governo se apresenta como um protagonista global na COP30, marcada para novembro em Belém, onde pretende colocar o Brasil no centro do debate sobre financiamento climático e valorização das populações tradicionais.
No entanto, esse impulso esbarra em contradições internas e na força do agronegócio no Congresso Nacional. Os ruralistas, com maioria consolidada em comissões-chave, pressionam por flexibilizações no licenciamento ambiental e por políticas que priorizem a expansão da fronteira agrícola, muitas vezes às custas de áreas de preservação. Projetos como a proposta de Lei Geral de Licenciamento — apelidada de “PL da Devastação” — ilustram o embate: facilitam a obtenção de autorizações, com a aberração do autolicenciamento, que acelerarão desmatamentos e impactos socioambientais. Embora partidos de esquerda e movimentos sociais exerçam resistência, falta ainda uma articulação contundente para elevar o meio ambiente ao patamar de prioridade política transversal, condição essencial para desarmar esses ataques.
Para avançar, o PT precisará cultivar duas frentes simultâneas: reforçar alianças com os movimentos socioambientais e buscar acordos práticos no Legislativo que impeçam retrocessos nos marcos regulatórios. É fundamental, ainda, consolidar internamente o entendimento de que a agenda ambiental não é “luxo de acadêmico”, mas tema vital para impedir que novas chuvas de granizo, deslizamentos e inundações ceifem vidas e provoquem destruições. Mais do que discursos, é preciso transformar vocabulário em orçamento, programas e fiscalização eficaz.
Erick Kayser é historiador.
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