As crianças vivas, mortas, famintas e os bebês reborn
por Dora Incontri
Acabo de ver um vídeo de um menino de 4 anos, negro, assustado, diante de um tribunal nos EUA, sem nenhum adulto, nem pai, nem mãe, nem advogado. O (des)governo norte-americano está encaminhando crianças para a justiça, para averiguar se estão legalizadas como imigrantes ou devem ser deportadas.
Então, preciso de novo falar de crianças. As que foram mortas, as que estão órfãs, as amputadas, as famintas – em Gaza (de que falei na semana passada) e em todos os lugares onde há massacres. As que estão sendo expulsas pelas leis anti-imigração, as refugiadas de guerra. As crianças brasileiras, geralmente negras, que são “por engano” baleadas nas periferias; as que sofreram abuso e violência doméstica e estão nos abrigos, esperando por uma adoção e quanto mais velhas e mais negras, menos chance terão de ganhar um lar.
Preciso falar das mães. As que perderam seus filhos, em Gaza, nas guerras todas do planeta, ou com doenças incuráveis, ou baleadas “por engano”. E também das mães solo – mais de 11 milhões no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), essas que se esfalfam no dia a dia, trabalhando nesse mercado de trabalho precarizado e injusto, muitas vezes com pais que postam lindas fotos no fim de semana com os filhos, mas pouco ajudam, pouco se responsabilizam, ou somem mesmo. As que adotam bravamente crianças que não têm família, e amam com tanta dedicação quanto as mães de sangue teriam tido, se pudessem, se conseguissem.
Tudo o que digo aqui é público e notório, é impactante para as pessoas com consciência política, social e um mínimo de coração e humanismo. A sensação mais aguda que nos toma é a de impotência de socorrer tantas tragédias, de mudar rapidamente a estrutura do mundo para torná-lo um lugar mais habitável, acolhedor e amoroso para quem nasce neste planeta.
E, no entanto, há mulheres pagando entre 1,500 e 10 mil reais para terem um boneco realista, com quem vão brincar de ser mães. E já há as que exigem atendimento médico para seus bebês reborn, as que estão brigando por pensão, as que querem vaga preferencial em estacionamento!
De minha parte, já andava incomodada com os exageros em relação aos animais de estimação. Tenho-os em casa e os amo demais. Mas os bichinhos, amorosos, ótimas companhias, amigos fiéis, não podem ser vistos com substitutos de filhos.
Duas considerações a respeito dos exageros de pais de pets e, agora, o absurdo dos bebês reborn.
A sociedade ferozmente individualista e adoecida (e aliás adoecida justamente por conta do individualismo), no contexto capitalista, resseca nas pessoas a capacidade, a vontade e, às vezes até a possibilidade psíquica, moral e espiritual, de criar laços profundos, de assumir responsabilidades reais, de cuidar do outro, do mundo, num engajamento de atuação objetiva com os problemas que nos assolam. O cuidar de animais ainda se dá com seres vivos, que têm sentimentos e de fato precisam de nosso afeto – e eles nos dão muito afeto também. Mas cuidar de um bichinho é bem mais fácil do que cuidar de uma criança – por isso o aumento significativo de pais de pets… Lidar com seres humanos, ter relações profundas com crianças, adolescentes, adultos é nos relacionarmos com vontades livres, com individualidades conscientes, com destinos de vida. Cães e gatos serão sempre amorosos, fiéis e companheiros. Para criar um filho é preciso muito mais do que dar comida e fazer carinho. De filhos, podemos colher orgulho ou ingratidão, há que se desdobrar para criar um ser humano digno e com sentido existencial.
Agora, nem seria preciso dizer – mas hoje temos de dizer o óbvio o tempo inteiro– os bebês reborn são bonecos, sem vida (na minha apreensão, o excesso de realismo me parece até tétrico). Trata-se uma maternidade fingida, cara, que revela claramente um adoecimento de quem a pratica. Não há como naturalizar isso!
Em ambos os casos, porém, entra a mola propulsora do capitalismo – nessa sociedade onde tudo vira produto: bebês reborn são vendidos a alto preço e os pet shops estão com um mercado farto para aqueles que tratam bichinhos como crianças e mantêm a vida além do que seria normal: com quimioterapias, cirurgias caras… A eutanásia, que hoje é discutida mundialmente para seres humanos, está cada vez mais retardada para gatos e cães, justamente porque se lucra muito com o prolongamento dessas vidas e porque os pais de pets têm um apego desmedido aos filhotes de patas. (Só alerta de defesa dos meus argumentos: a gente chora, sente a perda dos nossos bichinhos, e eu mesma passei por isso, várias vezes. É um luto que deve ser respeitado e validado, mas não é um luto igual ao que sentimos por um filho, por exemplo. Aliás, a perda de um filho é talvez a pior dor que um ser humano pode enfrentar.)
A questão toda é a inversão de valores, é a desumanização da vida, é a comercialização de fantasias que buscam preencher vazios existenciais, que poderiam e deveriam ser preenchidos com relações humanas, com trabalho pelo próximo, com militância para mudar o mundo!
Enquanto isso, crianças reais passam fome, são mortas, precisam de escolas melhores, esperam colo e aconchego. Sejamos adultos, maduros, conscientes!
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.