O governo Lula (PT) envia sinais contraditórios quando se trata da garantia da terra para justiça social. Embora se observem avanços na política indigenista na primeira metade do mandato, a reforma agrária permanece paralisada.
Nos dois primeiros anos da gestão Lula, foram homologadas treze Terras Indígenas e quatro operações de desintrusão concluídas nos territórios Alto Rio Guamá (PA), Apyterewa (PA), Trincheira Bacajá (PA) e Karipuna (RO). Além dessas, há duas operações em andamento nas TIs Yanomami (RR) e Munduruku (PA).
Logo após a posse de Lula, o governo empenhou-se na retirada dos invasores, principalmente garimpeiros, do território do povo Yanomami, que enfrenta doenças como malária e desnutrição, agravadas pela leniência do governo de Jair Bolsonaro (PL).
“Bolsonaro estragou tudo. Lula está tentando curar a cidade, os municípios e a terra Yanomami. Ele está demarcando terras indígenas que nunca foram demarcadas”, disse-me o xamã Davi Kopenawa, em entrevista no final de novembro em Boa Vista (RR). Kopenawa alertou, contudo, para a necessidade de ações mais efetivas, como a retirada total dos garimpeiros do território ancestral e o envio de mais profissionais de saúde.
As operações de desintrusão são complexas e envolvem a atuação de diversos órgãos governamentais. A retirada dos invasores é apenas o primeiro passo, sendo necessário um trabalho contínuo de fiscalização e proteção para impedir o retorno das invasões.
Mesmo após a conclusão das desintrusões, o risco de novas invasões persiste. Na TI Apyterewa, no Pará, por exemplo, houve uma redução de 97% do desmatamento após a ação do governo, mas pecuaristas voltaram a invadir o território, e ameaçam os indígenas do povo Parakanã.
Atualmente, as forças do governo estão no oeste do Pará tentando retirar os garimpeiros que invadem a Terra Indígena Munduruku. O último balanço da operação lista a destruição de 44 barcos e 12 máquinas, além de dezenas de dragas, motores estacionários, geradores, tratores e milhares de litros de combustíveis. Cada retroescavadeira destruída custa cerca de R$ 1 milhão. Ou seja, trata-se de um negócio comandado por grandes empresários, e não por simples garimpeiros.
Também foi apreendido mercúrio, utilizado para separar o ouro de impurezas e altamente tóxico para o sistema nervoso, causando doenças neurológicas, problemas de desenvolvimento cognitivo em crianças e outros distúrbios, conforme estudos da Fiocruz. A exposição contínua ao mercúrio afeta diretamente a saúde dos indígenas. Estive no território Munduruku e vi mulheres e crianças com deformidades semelhantes às observadas na síndrome de Minamata – condição neurológica grave causada pela intoxicação por mercúrio.
Sem cadeira de rodas, um menino tinha os joelhos ralados por rastejar no chão. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Rio Tapajós, que inclui as terras Munduruku, é recordista em solicitações de cadeiras de rodas, muitas delas destinadas a crianças com malformação cerebral.
O governo Bolsonaro incentivou o garimpo ilegal em terras indígenas, resultando em desmatamento, contaminação por mercúrio e violência. Houve um desmonte da política ambiental e indigenista, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e proteção.
Até o momento, o governo Lula tem conseguido atender, em parte, o que prometeu aos povos indígenas durante a campanha. Contudo, isso é muito pouco diante da dívida histórica do país com os povos originários.
Avanços pontuais também ocorreram na garantia de terras para comunidades quilombolas no final deste ano. O Quilombo Pitanga de Palmares, em Simões Filho (BA), onde a líder quilombola Mãe Bernadete foi assassinada em agosto do ano passado, teve o decreto de interesse social publicado, possibilitando a desapropriação. Outra área contemplada foi em Lençóis, também na Bahia, inspiradora do romance Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Júnior. O escritor, inclusive, recebeu uma ligação do presidente, registrada nas redes sociais do governo.
Contudo, ao tentar pagar outra dívida histórica relacionada à luta pela terra, o governo Lula 3 fracassa.
“Estamos ‘putos da cara’ com a incompetência generalizada do governo federal em resolver problemas”, disse-me um dos principais nomes do MST, João Pedro Stédile, em entrevista publicada nesta semana. Apesar de apoiar Lula e o PT, Stédile critica a incompetência do governo e a falta de avanços concretos na questão agrária, avaliando a atuação do governo com nota 3 de 10.
Antes de Lula, o governo Bolsonaro promoveu uma contrarreforma agrária, caracterizada pelo avanço da concentração de terras e pela intensificação da grilagem. Políticas de redistribuição de terras foram abandonadas, e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) foi transferido para o Ministério da Agricultura, com drástica redução orçamentária. Nenhuma terra foi incorporada ao Programa Nacional de Reforma Agrária, e a titulação de terras foi utilizada como propaganda, sem efetivamente assentar famílias.
O governo Lula não consegue avançar e, em dois anos de governo, não desapropriou nenhuma área para os sem-terra.
Em dezembro, os decretos relativos a cinco áreas foram finalizados, mas ainda aguardam a assinatura do presidente. Entre as áreas estão a fazenda Santa Lúcia, palco da chacina de Pau Darco (PA) em 2017, e três fazendas em Campo do Meio (MG), ocupadas pelo MST e que produzem o café orgânico Guaíi.
É muito pouco diante do que os movimentos sociais esperavam após terem apoiado Lula incondicionalmente. Segundo o MST, 65 mil famílias aguardam debaixo de lonas pretas para serem assentadas.
Enquanto o governo hesita, os conflitos por terra se acirraram durante o primeiro semestre de 2024 em regiões onde o agronegócio avança, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Esses ataques ocorrem no campo e no Congresso. Em novembro, a Câmara aprovou o regime de urgência do Projeto de Lei (PL) 4357/2023, que propõe excluir o conceito de “função social da terra” como critério para a União desapropriar propriedades para fins de reforma agrária.
Conforme a Constituição, a função social é cumprida quando a propriedade atende simultaneamente aos critérios de produtividade, respeito aos trabalhadores e preservação ambiental.