As amarras constitucionais do Sistema Nacional de Cultura

por Humberto Cunha Filho

A Constituição de 1988 organizou o Brasil a partir da ideia de “federalismo cooperativista”, aquele caracterizado pelo fato de que os entes da federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) compartilham a elaboração e a execução das leis em várias matérias, sobretudo aquelas atinentes à chamada ordem social, onde se localizam os direitos que se efetivam por meio de prestações públicas, como a saúde, a educação, a previdência e o acesso a uma pluralidade de bens e serviços culturais [1].

Para fazer as leis nos mencionados assuntos, o compartilhamento de poderes é bem simples: a União edita as normas gerais e os demais entes, segundo suas realidades, complementam tal legislação. No que concerne à execução de políticas públicas, as regras constitucionais não são claras, razão pela qual se popularizou a ideia de “sistemas”, por meio dos quais se definem as diferentes responsabilidades de cada tipo de entidade do poder público.

A ideia é tão forte no nosso federalismo cooperativista que a palavra sistema aparece por aproximadamente oitenta vezes na Constituição Federal de 1988, porém, a bem da verdade, com distintos significados, que não podem ser explorados agora, por falta de espaço. Assim, considerando a vastidão da ideia sistêmica, doravante será trabalhado o recorte de como ela aparece no Título VIII, o “Da Ordem Social” (Art. 193 a 232), para que sejam revelados os sistemas nele inseridos, como são constitucionalmente disciplinados e, com isso, compará-los com o sistema nacional de cultura (Art. 216-A).

Aparecem mencionados na referida parte da Constituição, mas sem qualquer disciplinamento nela, o sistema de seguridade social (Art. 195, § 3º), o sistema especial de inclusão previdenciária (Art. 201, § 12), o sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação (Art. 219-B) e os sistemas de radiodifusão privado, público e estatal (Art. 223).

No tema da educação, são mencionados, de forma individualizada, os sistemas de ensino federal, distrital, estaduais e municipais (Art. 211), que interagem entre si a partir de atos de “colaboração”. Note-se que a ideia de sistema nacional de educação somente surge em 2009, com a Emenda Constitucional nº 59, igualmente sem qualquer disciplinamento constitucional, uma vez que as metas e objetivos que acrescentou ao Art. 214 dizem respeito ao plano nacional de educação.

Algo semelhante ocorre com o sistema nacional de avaliação da educação básica (Art. 212-A,V, c), acrescido à Constituição pela Emenda Constitucional nº 108, de 2020, simplesmente mencionado na Lei Maior.

O próprio Sistema Único de Saúde, o SUS, tomado como o grande paradigma [2], o máximo de disciplinamento constitucional que tem são três diretrizes no Art. 198 e oito atribuições no Art. 200, ficando a sua parte operacional tratada por normas infraconstitucionais (leis, decretos, portarias etc.).

O Sistema Nacional de Cultura (SNC), constante no Art. 216-A, resultado de acréscimo [3] feito pela Emenda Constitucional nº 71/2012, difere dos seus congêneres por especificar, com uso muito impróprio da palavra, doze “princípios”, ademais, de uma estrutura orgânica de nove complexos elementos, além de se propor a ser um sistema de sistemas, ao fazer referência às “respectivas esferas da federação”, bem como aos “sistemas de financiamento da cultura”, “sistemas de informações e indicadores culturais”, “sistemas setoriais de cultura” e “demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo”. Em síntese, é um sistema que se propõe totalizante.

Há quem celebre o fato de o SNC ser o único sistema de políticas públicas constitucionalmente detalhado, destacando-se, entre estes, dois grupos de pessoas: os que encontram no Estado a solução para todos os problemas (neste caso, são coerentes com os próprios valores e convicções), além daqueles que, sem ter noção exata da sua própria ideologia, não percebem que uma federação só se justifica se tiver elementos de unidade, como os direitos humanos, e elementos de diversidade, radicados precisamente nas culturas, as quais, precisam de liberdade não apenas para os seus produtos e manifestações, mas igualmente nos seus processos e instituições.

Padronizar esses elementos evoca certa lembrança com o ato instituir uma religião oficial, mesmo que seja a religião civil, criação do positivismo [4], neste caso, do positivismo jurídico.

Se os demais sistemas não têm disciplina constitucional, mesmo os que tratam de assuntos técnicos, lidam com procedimentos padronizados e abrangem quase a unanimidade da população, é porque precisam de adaptações de tempos em tempos. Mais razões para ser juridicamente flexível seria o sistema de cultura, pois ele lida com os elementos responsáveis pela dinâmica e diversidade criadora [5] da vida social, todavia, como visto, o nosso SNC está cheio de amarras constitucionais.

Não fosse isso, a redação final do Art. 216-A é dotada de ambiguidades, normas subliminares e até de janelas hermenêuticas capazes de solucionar o problema principal abordado nesta reflexão; disso tratarei em artigo futuro, mas apenas se houver manifestação de interesse por parte do meu pequeno, mas qualificado grupo de leitores.

Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP).

Notas

[1] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Federalismo Cultural e Sistema Nacional de Cultura: contribuições ao debate. Fortaleza: Edições UFC, 2010

[2] MONTANARI, Ivan. Singular e plural: o processo de institucionalização do Sistema Nacional de Cultura (dissertação de mestrado). São Paulo: USP, 2022, p. 169.

[3] ROCHA, Sophia Cardoso. Da Imaginação à Constituição: a trajetória do Sistema Nacional de Cultura de 2002 A 2016 (Tese de Doutorado). Salvador: UFBA, 2018, p.161.

[4] COMTE, Augusto. Discurso sobre o Espírito Positivo (Portuguese Edition) (p. 84). Montecristo Editora. Edição do Kindle.

[5] CUELLAR, Javier Pérez (Org.). Nossa Diversidade Criadora. Campinas-SP: Papirus, 1997.

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Last Update: 27/06/2025