Por Artur Scavone*
Eu não queria assistir ”Ainda estou aqui”.
Não costumo nem assistir nem mesmo ler material que se reporta à época. A memória dói.
Eu lutei junto a mais de trinta companheiros que foram assassinados. Mas os comentários, o sucesso, tudo me fez ir ao cinema.
E o filme é uma pancada no estômago.
Mas sem pancadaria Walter Salles faz o espectador sofrer a angústia do terror, o mesmo terror que o torturador aprende a impor para fazer a vontade do resistente submergir à sua vontade: “sua vida e sua lucidez estão em minhas mãos e ninguém mais sabe que você está aqui”.
A cena de Eunice presa é a mais doída, pela síntese do marido desaparecido e pela revelação de que nada mais lhe pode acudir. Nem a ela nem à filha. E o assassinato de Rubens Paiva se materializa no atropelamento de Pimpão, outra cena chocante.
Eu e tantos outros companheiros passamos meses no DOI-CODI. Além da tortura física inicial, seguia-se a tortura que Valter Salles tão bem retratou: gritos, berros e choros pelos corredores escuros e encobertos dos porões do regime.
Quando eu saí do DOI-CODI, não conseguia ouvir choros – nem mesmo de criança – sem sentir uma profunda angústia.
E o sangue que lavava os lugares de tortura só aparece em dois momentos: quando o inquisidor apaga seu cigarro no chão e, depois, subliminarmente, quando Eunice passa pelo corredor das celas que está sendo lavado.
As salas de tortura por que passamos eram todas sujas de sangue. E não eram limpas, por óbvio. Nem o eram os colchões sujos de sangue e suor que nos abrigavam nas celas.
Faltou, talvez, uma marca que por muito tempo me assombrou: o tilintar das chaves do carcereiro que anunciava a busca de alguém para interrogatório e tortura.
“Ainda estamos aqui” é o evento que faltava para coroar com grandeza – embora coberto de tristeza – o julgamento que a sociedade brasileira precisa fazer, condenando a ditadura, a tortura e a insana licença para matar com que os agentes do regime eliminavam os que resistiram. Mil vivas às Fernandas.
PS. Minha grande vingança, que saboreei com alegria e sofreguidão, foi ter eleito Lula em 2002 e depois, assustado, em 2022.
*Artur Scavone é jornalista e mestre em filosofia pela USP.
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