Um artigo recente do Washington Post revela uma crise estrutural de retrocesso que as mães enfrentam no mercado de trabalho. Estratégicas para a recuperação econômica pós-pandemia, agora elas são “expulsas” para dar lugar à normalidade de antes. Mães de crianças pequenas são as mais afetadas.
Nada de novo no frente da desigualdade de gênero. Mas isso faz ressoar uma reflexão que há tempos me consome sobre os caminhos para colocar a maternidade na centralidade da agenda política brasileira.
Via de regra, a maternidade como centralidade é vista com coleta pela maior parte do movimento feminista. No entanto a realidade atropela, afasta as mulheres dos debates e as faz olharem para a “vida no lar”, as tradwives , como uma saída até razoável para a exaustão. Sabemos que não é uma alternativa, nunca houve essa época do nosso tempo, é uma idealização (e vou poupá-las de descrever as razões, porque seria outro texto) essas características não são “culpa do feminismo”, embora não exista espaço vazio na política. Se ninguém fala, alguém ocupa.
O fato é que ao se furtar, em pleno século 21, pós pandemia global, de colocar a maternidade na centralidade, o campo da esquerda joga essas mulheres para o colo da direita — que dá a saída “fácil”, mas da qual ele não se propõe a dar nenhuma. E, pasmem, mãe não é nicho. Hoje, 75% das mulheres brasileiras são mães.
Isso acontece porque o campo da esquerda, historicamente, não se propõe a se debruçar sobre essas questões de forma integrada. As pautas são diluídas como as demandas do mundo do trabalho (licença-maternidade, paternidade, tentar não ser demitida na volta); da violência (tenta sobreviver ao parto); da educação (bota na creche e vai ser feliz); da cultura. E fim. Não existe um esforço de elaboração política geral (quiçá de políticas públicas) centrado na maternidade em si.
A pauta da Política de Cuidados (recente no país, com uma política nacional aprovada neste ano) é um avanço, passa pela maternidade, mas não se centra nela. Essa política tem outros infinitos méritos, é necessária, importante, estratégica, principalmente para mulheres, mas não é sobre isso que estou falando.
Porque essa coleta da central na maternidade não é por acaso.
O feminismo ensina a desviar das armadilhas do patriarcado, olhando e honrando quem veio antes de nós. Por exemplo, uma das lutas feministas da Constituição de 1988 relacionadas ao SUS era garantir o atendimento integral das mulheres, independentemente de sua função reprodutiva. Antes, só havia o conceito de hospital e atendimento “materno-infantil”, como se ser mãe fosse condição indissociável de ser mulher. Garantir que a mulher fosse vista e reconhecida como sujeito político de direito, independente de sua capacidade reprodutiva era estratégica para garantia de direitos. E as feministas eram absolutamente corretas. Tidos avanços indiscutíveis e só estamos aqui, neste ponto da história, porque eles assim o fizeram, na busca de romper com esse instrumento de dominação patriarcal.
A função reprodutiva da mulher, historicamente, foi e tem sido utilizada como mecanismo de controle, imposição e subjugação das mulheres. É sobre o solo dessa perspectiva patriarcal que a direita conservadora centraliza o conceito de maternidade — dando ares de romance e idealização, enquanto cerceia toda possibilidade de autonomia e garantia de direitos. E mesmo hoje, parece que esta é a única forma possível de conceituar maternidade: a mãezinha, pura, casta, devota, predestinada, instintiva. Portanto, faz todo o sentido haver um esforço racional em dissociar esses papéis — mulher e mãe — para ampliar a pluralidade de papéis que as mulheres podem e exigem exercer na sociedade, independentemente de suas escolhas sobre ter ou não ter filhos.
Porém o plot-twist carpado é que as mulheres continuam sendo mães, escolhendo ser mães (e não escolhendo também); e são eles que garantem a reprodução social e da vida enquanto o ultraliberalismo corrói nossas bases sociais e humanas mais profundas.
As respostas progressistas minimamente mais elaboradas dão conta de organizar a vida da mulher para que ela volte a ser explorada no mercado de trabalho e coloque o filho na creche. Tudo isso se dilui em caixinhas do mundo do trabalho, da educação, e de pautar na opinião pública o hercúleo esforço de divisão de tarefas e de legislação para que o genitor cumpra obrigações mínimas. E isso já é uma luta enorme, batalha permanente, incansável.
Ainda assim, valeu que passou a hora do campo progressista e de esquerda dar conta de elaborar e pautar a centralidade da maternidade, desviando das armadilhas do patriarcado, mesmo sem grandes certezas ou construções prontas. Porque não tenemos, eu tampoco.
Para isso, proponho começar com algumas perguntas:
– É possível construir nesta sociedade uma maternidade emancipadora?
– Como fazer da maternidade uma ferramenta de emancipação das mulheres?
– Que mundo queremos construir ao lado das mães?
O reconhecimento de que avançar nessas respostas exige de nós não apenas o conhecimento das políticas públicas existentes, ou de mecanismos orçamentários para fazer o giro executivo, mas aquilo que há muito tem faltado em nosso campo: sonhar com a condição de crer em nosso sonho.
Ana Clara Ferrari