Antes de mais nada, alguns pontos importantes antes de começar:
- Esse é um texto opinativo e não reflete a opinião do jornal nem do partido
- Se você procura uma crítica contundente, recomendo a coluna do Diego Cruz que vai direito ao ponto
- Ah, mas e o INSS? Já publicamos sobre isso aqui.
Dito isso, vamos ao vespeiro.
A recente condenação de Leo Lins reacendeu o debate sobre os limites da liberdade de expressão e da arte. Lins foi condenado a oito anos e três meses de prisão, além de ser multado em mais de R$300 mil por conta de seu show intitulado “Perturbador”. O show aconteceu em 2022 e sua gravação já estava suspensa desde agosto de 2023 por conter inúmeras declarações discriminatórias e criminosas relacionadas à pedofilia, pessoas com HIV, com deficiência, idosos, negros, judeus, nordestinos e enfim, o pacote completo da intolerância.
Se você está lendo nesse portal, imagino que não está esperando que alguém aqui vá sair em defesa de Leo Lins. Então, mais do que discutir o caso, gostaria de entrar na seara dos muitos outros debates abertos.
Pode a Arte ser preconceituosa?
Todo problema complexo tem uma solução simples, rápida, fácil e errada. A tentativa de justificar a condenação de Lins com a simples recusa de seu caráter artístico – dizendo “isso não é arte” -, se enquadra nessa categoria. Isso nada explica e só causa mais confusão.
Há uma ideia corrente de que a Arte seria apenas aquilo que engrandece o espírito e eleva a consciência. Assim, só seria merecedor do estatuto de Arte aquelas produções com fins nobres ou quer versam sobre o que é belo. Essa é uma ideia romântica e, como tal, essencialmente idealista. O que está por trás desse argumento é de que haveria, supostamente, uma definição ontológica da Arte e que daí derivaria seu caráter político e ideológico.
Essa concepção não resiste à realidade. Para os conservadores, boa arte é aquela que preserva os valores tradicionais. Para os progressistas, aquela que afronta a moralidade vigente. Tudo isso não prova mais nada além do fato de que o que existe são disputas concretas sobre o que é a Arte e a que ela serviria.
Isso significa então que a arte pode ser preconceituosa, racista e servir à opressão? A resposta é um triste sim. Na verdade, se invertemos a abordagem, a coisa até parece lógica: em uma sociedade racista, machista, opressiva, colonial, por que a arte não seria também? Afinal, ela existe no mundo e é feita pelos homens e mulheres que nele vivem e que compartilham de suas ideologias.
Mas o ponto é que obras reacionárias continuam sendo obras. Leni Riefenstahl fez cinema para o Terceiro Reich e não foi um cinema medíocre. Arno Breker esculpia o ideal ariano. Filippo Marinetti exaltava o fascismo e guerra em suas pinturas e manifestos. Quantas bandas de metal tem alinhamento ideológico questionável? Não tem, por acaso, Hollywood um alinhamento ideológico claro a serviço do soft power imperialista?
Dizer simplesmente “isso não é arte” não explica nada. O debate que precisa ser feito é outro. É arte, mas é arte nazista. É pintura, mas pintura fascista. É cinema, mas cinema imperialista. A chave não está no estatuto ontológico, mas em seu conteúdo social e político.
Aliás, resquícios estéticos do fascismo continuam nos impressionando. Susan Sontag chamou isso de “fascinante fascismo” para descrever essa permanência anacrônica. Corpos saudáveis, a disciplina, a força, o exercício da potência de vontade contra o que se julga o mal e em defesa do bem… não é essa a base dos filmes de super-heróis que exaustivamente tem inundado os cinemas nas duas últimas décadas? Existe um fascínio estético no exercício do poder, especialmente quando ele é exercido sem amarras. Isso explica por que o autoritário Darth Vader tenha se tornado um ícone da cultura pop ou porque os católicos celebraram as imagens triunfalistas do último conclave como um espetáculo da superioridade católica. No centro disso tudo está o estético.


Gostamos de coisas boas e de coisas medíocres. Gostamos do belo mas também do feio e do grotesco (vide os filmes de terror splatter, gore, terror exploitaton etc.). É possível haver fruição estética com tudo isso. O que significa dizer que Arte não é só o que você gosta.
A armadilha de Lins
A armadilha de está justamente em confundir essa fronteira. E Leo Lins joga politicamente aqui. Com a condenação, alcança uma visibilidade que ele jamais alcançaria sendo o ator medíocre que é. Mirou um nicho de mercado e jogou uma isca para a justiça para se alavancar. E conseguiu.
Não raramente a arte atua nesse tensionamento dos limites sociais. Em geral, para provocar reflexões. O que Lins decidiu fazer foi testar os limites da sociedade, só que para trás. A luta dos setores oprimidos tem tensionado a sociedade para reconhecer de que práticas opressivas são crime, não piada. Isso muda também o que entendemos por humor. Se Lins decide tensionar os limites entre o crime e o humor, a única possibilidade era incorrer em crime. O que de fato aconteceu. Foi uma jogada de marketing, mesmo que as vítimas sejam reais.
O debate sobre a liberdade
Portanto, não há dúvidas que estamos diante de um imbecil que deve pagar pelos seus crimes. Mas isso não diminui os riscos da interferência jurídica na Arte. Esse é o grande argumento da direita para advogar uma suposta e abstrata liberdade irrestrita (o que significa liberdade para oprimir). Isso não significa, contudo, que não haja pessoas honestas realmente preocupadas com a liberdade artística.
E com razão. Não há na história um exemplo sequer de interferência estatal na Arte que não tenha sido um completo desserviço. Trotsky, aliás, era um defensor intransigente da liberdade da Arte em oposição à política do proletkult e ao realismo socialista.
Isso significa que devemos aceitar qualquer arte reacionária em nome da liberdade artística? De forma alguma. Afinal, como dizia Brecht, “a arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para moldá-lo”. Mas o combate a arte reacionária não pode ser terceirizado. O rechaço não deve partir dos agentes do estado burguês que, em última instância, não passam de representantes da burguesia. A arte reacionária não pode ser julgada neutra e deve ser combatida – não pode censores, mas pela crítica viva da sociedade.
A hipocrisia burguesa aqui é enorme. Se de fato defendessem uma liberdade absoluta para a arte – inclusive para cometer crimes, como no caso de Leo Lins – porque tanto pânico com as músicas de MC Pose do Rodo ou de Oruam? E se a preocupação fosse mesmo com a apologia ao crime, por que não condenar as músicas cantadas nas escolas militares e que exalta chacinas e extermínios? Por que não processam os inúmeros pastores que fazem do púlpito palanque para discursos de ódio? A conta não fecha. Nós bem sabemos o que nos sobra quando a burguesia assume para si o julgamento da arte: racismo cultural, criminalização da pobreza, da cultura popular e colonialismo.

Vamos falar sobre apologia ao crime nas escolas militares?
Como muito bem disse Pablo Biondi sobre a disputa em Musk e Alexandre de Moraes, não somos obrigados a tomar um lado entre dois setores burgueses. O mesmo se aplica aqui. Entre Leo Lins, um homem branco, rico e racista, e a justiça burguesa, nenhum lado nos representa a defesa da Arte. O que resta é apenas um criminoso condenado a pagar pelos seus crimes.
Defendemos a liberdade da Arte, mas não a confundimos com a liberdade para oprimir nem com a defesa da impunidade. Em outras palavras, a defesa de uma arte livre não significa, necessariamente, que ela possa ser livre hoje sob o capitalismo. Em um mundo marcado pela opressão, muitas vezes a arte pode também ser opressiva. Defender uma arte livre, significa defender um mundo livre onde a Arte também possa ser. Não há liberdade enquanto pessoas forem exploradas e oprimidas.
Por uma Arte livre, que Leo Lins pague pelos seus crimes.