É triste, pois foi mais um bamba que o mundo do samba perdeu. Arlindo Cruz partiu.
Mas, fomos pro “gurufim” [“adeus”, em quimbundo, língua falada no Sul da África, também usado para os velórios festivos, marcados pela música, dança, comida, bebida, contação de histórias etc.] e festejamos o teu existir entre nós. E isto será pra eternidade, através das suas obras musicais que ficarão em nossos corações e mentes.
E foi assim, conforme seu pedido e desejo, que nós nos despedimos do homem negro, sambista, compositor, músico, chefe de família, pai, amigo, parceiro das horas fáceis e difíceis. Sujeito sagaz e estrategista na arte de fazer sambas, a paixão de sua vida.
Foi na quadra da sua Escola de Samba de coração, a Império Serrano, que fizemos a despedida da “matéria física”, como é costume no mundo africano. Foi lá que realizamos o “Gurufim do Arlindo”: cantamos, tocamos, sambamos e, assim, o reverenciamos já como parte de nossos ancestrais, alguém que “fez a passagem”, atingindo o descanso físico entre nós.
Sensibilidade de poeta, ginga de sambista
Arlindo trazia consigo, já no próprio nome, a sensibilidade de um artista. Afinal de contas, ele se chamava “Ar-lindo”, uma junção que carrega um tom poético que, também como é comum nos saberes africanos, é a essência da poesia: a força da palavra em si.
Essa era a maestria desse nosso querido Ar-lindo Cruz. Assim era o sambista que nós conhecemos, com o qual convivemos e que tanto nos encantou ao longo de sua trajetória e através de obras musicais nas mais variadas linhas do samba.
O Partido Alto, por exemplo, ele aprendeu com seu mestre maior, Antônio Candeia Filho e/ou Mestre Aniceto, da Império Serrano, sua Escola do coração. Mas também enveredou pelo samba-canção e o samba-afro, como atesta a música que ele fez para nós, do Grupo Afro Agbara Dudu, onde, para nossa satisfação, Arlindo “batia ponto” sempre que podia, tendo inclusive desfilado no carnaval do Bloco nos idos anos 1980/90.
Esse era o Arlindo Cruz, de Madureira, de Oswaldo Cruz e do mundo. Um guerreiro dos bons na defesa do samba e, por isso mesmo, não é à toa que seu nome esteja vinculado à história do Fundo de Quintal e que ele seja um dos organizadores de rodas de samba como a do Cacique de Ramos, o Pagode de Cascadura ou o Pagode do Arlindo, no Teatro Rival, onde ele podia ser visto, resistindo e mantendo a chama acessa, mesmo num momento de grande batalha pessoal, quando enfrentava um tratamento, a base de morfina, para minimizar profundas dores do joelho.
Depois, foram oito anos de batalha pela vida, após um acidente cardiovascular, e, aí, no dia 8 de agosto, o mundo do samba sofreu esse tremendo baque: Arlindo havia nos deixado.
Algo que, sem sombra de dúvida, foi um choque, por mais que, de certa forma, estivéssemos – familiares, parentes, amigos e nós que convivemos com ele – preparados para este momento. Mesmo assim, o sentimento de perda foi enorme.
A samba nas veias de um compositor inspirado
Arlindo era afilhado musical do grande Mestre Candeia, a quem foi apresentado pelo pai, o Arlindão, quando iniciou sua carreira, ainda muito jovem, com 13 anos, quando seu potencial artístico já despontava, comprovando uma “máxima” entre nós: tem gente que carrega o samba nas veias.
Em seu percurso, foi de provável oficial da Força Aérea Brasileira para o samba, que transformou em opção de vida, nos brindando com “clássicos” e sucessos antológicos, que marcaram a história do samba do Rio de Janeiro e do Brasil, como “Bagaço da laranja”, “Camarão que dorme a onda leva”, “Meu lugar”, “O show tem que continuar”, “Só pra contrariar” ou “Tá perdoado”, dentre centenas de outros.
Vivi uma experiência interessante com esse “poeta do samba”, quando a Império Serrano atravessava uma crise, tendo sido rebaixada do Grupo Especial e enfrentando problemas financeiros e muitos desentendimentos.
Numa conversa, Arlindo falou de suas preocupações com aquele cenário e disse que buscaria uma saída. E fez isto. Tentando reunir todo mundo no Alto da Serrinha, produziu um documento (tipo um “manifesto”), chamando pela unidade, em defesa da “luta maior”, que era levantar a bandeira da Escola e superar a crise. O recado foi bem dado e, mais importante, compreendido. A Império Serrano avançou naquele ano na sua organização.
Descanse em paz, irmão!
Nas questões políticas e sociais do nosso país, Arlindo sempre esteve antenado com os assuntos do nosso povo e da nossa classe. Também foi um compositor consciente do seu papel político. As letras de vários de seus sambas traduzem sua compreensão de mundo, como artista comprometido, principalmente com a luta negra e do nosso povo sofrido dos morros e favelas desse país.
Tempos atrás, tive a oportunidade de ouvir do próprio Arlindo que sua opção de voto era “contra burguês vote 16”, como também tive o prazer de conversar bastante com ele sobre elaborações políticas do PSTU, naquela época.
Esse foi o Arlindo Cruz Poeta do Samba, que tive a oportunidade de conhecer e com o qual convivi em alguns momentos de sua vida. Descanse na paz do seu Orun, meu Irmão!
Seguiremos na luta “contra o burguês” e ouvindo e cantando suas composições.