Redação Viomundo
Nesta segunda-feira, 05/05, a historiadora e professora Arlene Clemesha lança em São Paulo, capital, o livro Marxismo e Judaísmo, história de uma relação difícil, da Boitempo.
É a segunda edição — revisada, ampliada e atualizada — da obra prefaciada por Jacob Gorender.
Escrita em linguagem acessível e desmistificadora, a autora oferece uma ”excursão notavelmente interessante pelos meandros sinuosos de uma questão nada fácil”, escreve Gorender.
Arlene Clemesha é professora de História Árabe e diretora do Centro de Estudos Árabes da USP.
”A segunda edição chega ao público em um momento de extrema gravidade para o povo palestino, para Israel no Oriente Médio e para o judaísmo mundial, submetido a uma crise de consciência sem precedentes na era contemporânea”, ela observa.
“Um livro extraordinário que rastreia as maneiras pelas quais os marxistas se mobilizaram para compreender e resolver a questão judaica”, afirma Ran Greenstein, professor associado da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul.
”Arlene Clemesha fornece um quadro de referência essencial para entender debates históricos e práticas políticas. Com um foco nos socialistas europeus e russos do final do século XIX e início do XX, a obra conta uma história em perspectiva global que permanece relevante para a nossa compreensão de acontecimentos contemporâneos”, acrescenta Greenstein .
O lançamento será às 19h, na livraria Martins Fontes, à rua Dr. Vila Nova, 309, Vila Buarque. É ao lado do Sesc Consolação. Tem estacionamento vizinho.
Haverá um bate-papo sobre o livro com Arlene Clemesha e Francisco Foot Hardman; mediação de Isadora Sklo.
Para adquiri a obra Judaísmo e Marxismo, clique aqui

Marx, Engels e Lassale nos jornais do Bund, primeiro grande partido operário social-democrata da Rússia ( União Geral dos Operários Judeus da Rússia, Polônia e Lituânia)
“Marxismo e judaísmo”: o resgate da história que a vitória do movimento sionista buscou ocultar
Por Arlene Clemesha, Blog da Boitempo
A segunda edição deste livro chega ao público em um momento de extrema gravidade para o povo palestino, para Israel no Oriente Médio e para o judaísmo mundial, submetido a uma crise de consciência sem precedentes na era contemporânea.
O genocídio do povo palestino, que se estende há mais de quinze meses, é descrito como apocalíptico pelo chefe do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, Tom Fletcher.
Os ataques israelenses são ininterruptos. Ocorrem com o conhecimento de todos, a cumplicidade das principais potências mundiais, e o apoio explícito dos Estados Unidos.
Assassinatos massivos executados com o emprego de inteligência artificial, tal qual o sistema Lavender, somam-se a assassinatos dirigidos, executados por drones contra médicos, jornalistas, agricultores e cozinheiros, entre outros profissionais empenhados em tratar e alimentar a população, para não mencionar os grotescos “massacres da farinha” e centenas de outros casos de ataques mortíferos contra pessoas em busca de alimento.
A fome é criada de maneira proposital e utilizada como arma de guerra. Há uma escassez cruel de água potável, medicamentos e demais itens indispensáveis à vida. Noventa por cento da infraestrutura da Faixa de Gaza foi destruída e o Norte foi ocupado pelo Exército israelense.
A população não aguenta mais os sucessivos deslocamentos forçados. Mais de 2 milhões de pessoas estão desalojadas e simplesmente não há lugar seguro na Faixa de Gaza. O meio ambiente está poluído por metais pesados, mas também pelo esgoto a céu aberto. O ar que se respira carrega o pó dos escombros e as partículas dos explosivos.
Nas palavras do respeitado médico palestino Mustafa Barghouti, há uma guerra química subjacente. Metade da população da Faixa de Gaza, mais de 1 milhão de pessoas, está doente sem que haja tratamento disponível. Doenças de pele e doenças infecciosas se alastram pelos campos.
Investigações independentes trazem pavorosas evidências de capturas, manutenção de pessoas em situação de degradação, violência sexual e tortura.
Enquanto isso, soldados israelenses postam suas ações militares nas redes sociais, documentando seus crimes enquanto zombam dos palestinos em vídeos no TikTok.
Como bem disse Edgard Morin, em O mundo moderno e a questão judaica,[1] a relação israelo-palestina é muito simples, há um opressor e um oprimido. Mas ela é também extremamente complexa na medida em que o sionismo projeta no futuro o medo do passado. Através de uma cultura do medo – que instrumentaliza as feridas do Holocausto e dos pogroms –, todas as políticas israelenses expansionistas, de segregação e limpeza étnica, de massacre e genocídio, são justificadas, e a oposição judaica interna é reprimida e silenciada.
De fato, o Estado de Israel, que se autointitula representante dos judeus de todo o mundo e símbolo de redenção após o genocídio judaico perpetrado pela Alemanha nazista, está perpetrando, ele mesmo, o genocídio do povo palestino em nome da segurança do povo judeu.
O assalto do Hamas foi decerto violento, quase 1,2 mil pessoas morreram em decorrência dele, das quais cerca de oitocentas eram civis israelenses.
Uma parte expressiva foi morta pelo Hamas e demais combatentes que participaram do assalto de 7 de outubro de 2024; outra, por fogo amigo e o emprego da Diretiva Hannibal. [2]
Mas há um imenso exagero na comparação desse assalto ao Holocausto. A equiparação, feita pelo governo israelense, ilustra o argumento de Edgard Morin de que o medo é fomentado como maneira de tornar complexa uma relação bastante simples, perpetuar a sombra do Holocausto, e, no contexto colonial palestino, inverter os papéis, tornando os opressores históricos do povo palestino em vítimas eternas.
Como diz Enzo Traverso, “se uma guerra genocida é lançada em nome da ‘luta contra o antissemitismo’, são os nossos valores éticos e normas políticas que saem manchados: os pressupostos da nossa consciência moral – a distinção entre opressor e oprimido, perpetradores e vítimas – correm o risco de serem virados de ponta-cabeça”.[3]
Ou seja, a cultura do medo analisada por Edgard Morin, ou a instrumentalização da memória do Holocausto, passa a configurar o melhor meio para a sobrevivência, não do judaísmo, mas do sionismo. A confusão, ou melhor, a conflação entre os dois – sionismo e judaísmo – é proposital.
Neve Gordon, por sua vez, explica que a instrumentalização da memória do Holocausto e a cultura do medo decorrente disso promovem mais uma inversão de posições, desta vez entre o Estado de Israel enquanto “o protetor” e os judeus enquanto “protegidos”. [4]
Ou seja, não obstante o Estado ter fomentado, desde a sua origem, a ideia de que apenas ele poderia proteger os judeus do antissemitismo, o que acontece na realidade é o inverso. Não é o Estado de Israel que protege os judeus do antissemitismo – que lamentavelmente ainda existe e se expressa seja em grupos neonazistas e neofascistas, seja nas fantasiosas alusões a supostas formas de dominação judaica mundial, ou mesmo quando ressentimentos anti-israelenses transbordam para expressões indevidas e impróprias de raiva contra judeus –, são os judeus individuais que protegem o Estado de Israel de críticas cada vez mais duras (em geral devido à sua atuação cada vez pior contra os palestinos).
Inseridos na cultura do medo, esses judeus protegem o Estado de Israel de críticas, na maioria das vezes bastante objetivas e racionais, como se protegessem seu próprio direito à existência enquanto pessoa judia em qualquer país do mundo. A mencionada conflação entre sionismo e judaísmo é acompanhada pela conflação entre o judeu individual, o judeu coletivo e o Estado de Israel.
Hoje, não há dúvida de que há um genocídio palestino sendo executado em nome da segurança de Israel, que por sua vez se arroga a posição de representante e protetora de todos os judeus do mundo.
Mas também chama a atenção que a política de extrema violência israelense parece ter rompido, para muitos judeus, a barreira do medo.
A brutalidade do genocídio palestino vem causando questionamentos, fissuras e o distanciamento de um considerável número de jovens judeus ao redor do mundo em relação ao sionismo. Pode-se dizer, como muitos têm feito, que o judaísmo vive a sua maior crise de consciência desde a criação do Estado de Israel. Crise esta que se manifesta “através de uma rejeição decisiva ao uso dos traumas coletivos do povo judeu para justificar a ocupação e a violência contra os palestinos”.[5]
Os gritos de não em meu nome! e de nunca mais é agora! entoados nas manifestações pró-Palestina revelam não apenas uma oposição absoluta ao genocídio, mas, de maneira mais profunda, uma ruptura radical desses jovens judeus com a cultura do medo cultivada pelo sionismo há décadas como forma de justificar os crimes cometidos contra o povo palestino e manter intacta a adesão dos judeus à ideologia sionista.
O genocídio palestino, em suma, está provocando uma mudança de paradigma em relação à ideia da inevitabilidade do sionismo e da necessidade de todo judeu protegê-lo enquanto garantia da sua própria segurança e sobrevivência.
Mas este livro, publicado originalmente em 1998, nunca teve por objeto o movimento sionista, que àquela altura vivia o ápice da ilusão de paz transmitida ao mundo pelo processo de Oslo.
O movimento sionista só aparece neste volume como parte das disputas políticas e ideológicas entre os vários movimentos judaicos de esquerda na passagem do século XIX ao XX.
Por ter sido minoritário, aparece pouco, como seria de se esperar de uma pesquisa que não tem o sionismo como seu eixo de análise e volta ao passado sem se pautar pelas disputas do presente.
O que faz este livro, em contrapartida, é resgatar a história que a vitória do movimento sionista buscou ocultar, quando, em meados da década de 1950, tentou ressignificar o sionismo como a realização da luta histórica do povo judeu, relegando outras correntes e outros movimentos, de fato majoritários até o entreguerras, a meras notas de rodapé da história judaica.
Este livro descreve, por exemplo, como o combate ao antissemitismo no Império tsarista foi empreendido pelo movimento revolucionário russo, ou como a esquerda judaica e as principais alas da esquerda russa lutaram lado a lado para proteger comunidades judaicas dos pogroms durante a guerra civil que se sucedeu à Revolução de 1917.
Resgata também a vida judaica nos guetos da Europa oriental, onde os trabalhadores judeus formariam os primeiros círculos operários e intelectuais, cujo desenvolvimento daria origem ao Bund, o primeiro grande partido operário social-democrata da Rússia, inicialmente maior que o próprio POSDR, de onde saíram mencheviques e bolcheviques pouco tempo depois.
Analisa os debates entre as corrente judaicas de esquerda a respeito do modelo de emancipação e dos métodos que defenderiam para chegar a ela. Enfim, aborda como, na prática, os judeus engajados viveram seu judaísmo, viram e pensaram sua própria emancipação, a relação dela com a emancipação geral de todos os trabalhadores, e a luta contra o antissemitismo.
No momento da sua primeira edição, em 1998, posso dizer com certa segurança que este livro despertou o interesse de alguns setores minoritários da comunidade judaica.
Pode ser exagero meu falar em setores, talvez tenham sido apenas alguns indivíduos, velhos militantes comunistas, intelectuais, integrantes da esquerda local que conheciam muito bem a história do engajamento dos judeus nos movimentos revolucionários da esquerda mundial.
Nomes tão saudosos como Jacob Gorender, Max Altman, Jacob Guinsburg e Maurício Tragtenberg, entre outros, guardavam na própria pele e em suas trajetórias a história do engajamento judaico nos movimentos de emancipação ao redor do mundo. Este livro, mesmo sem tratar do Brasil, falava diretamente ao legado desses grandes combatentes.
Hoje, quem sabe, é possível que esta nova edição de um livro há muito esgotado desperte algum interesse entre os jovens judeus que desde o início do genocídio em Gaza criticam a política sionista e se engajam em movimentos contrários a ele. Talvez possam encontrar aqui alguma coisa do passado que explica quem eles são e o que os move atualmente.
Afinal, observamos hoje o “ressurgimento de uma esquerda judaica que foi deliberadamente destruída pelo judaísmo oficial entre as décadas de 1950 e 1980” [6].
São jovens que retornam às correntes não sionistas do pensamento crítico que prevaleceu entre os judeus antes da Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, e a criação do Estado de Israel.
Mais que isso, ao afastar-se do sionismo, essa juventude é isolada e segregada da comunidade pelas elites judaicas tradicionais, que temem o seu ativismo e os seus questionamentos.
Como nota Edgar Azevedo, “a ofensiva das organizações oficiais acusa os dissidentes de não serem ‘judeus de verdade’, e a resposta militante, por sua vez, questiona não apenas a legitimidade, mas também a autoridade dessas entidades para determinar a essência da identidade judaica na arena contemporânea”.[7]
A juventude dissidente está, assim, passando por um processo de busca por novos espaços para viver a sua cultura, ressignificando o seu judaísmo e rejeitando o controle que o establishment sionista exerce sobre a comunidade.
É uma crise que abala as relações familiares, reconectando-se, em muitos casos, ao passado reprimido de um judaísmo redentor de esquerda que lutou pela emancipação e contra o antissemitismo, sem deixar de denunciar as armadilhas e os crimes do projeto colonizador na Palestina.
Percebe-se, assim, que não havia como deixar de falar do contexto em que surge esta segunda edição, revisada e ampliada para incluir dois novos capítulos.
Um sobre os judeus nas Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola, representando, ao mesmo tempo, o ápice da esperança em derrotar o fascismo e o seu fracasso às portas da Segunda Guerra Mundial; e outro acerca das ideias de Leon Trótski, o único teórico e líder político da esquerda mundial a prever a eliminação dos judeus da Europa.
Hoje, pode-se dizer que o dilacerante genocídio do povo palestino perpetrado em nome da segurança do Estado sionista é mais um capítulo da mesma tragédia que teve o Holocausto como um de seus pontos mais críticos e tristes.
Esperamos, assim, que o contexto lance sua luz sobre a história que buscamos resgatar de maneira abrangente, e o mais fielmente possível, nestas páginas. Certamente, um começo.
Boa leitura.