O governo de Javier Milei exibe como troféu sua principal conquista até aqui: a queda vertiginosa da inflação. Depois de atingir picos mensais de 25% em dezembro de 2023, a taxa caiu para 1,6% em junho de 2025 — uma marca que remete aos tempos de estabilidade pré-pandemia. No entanto, essa vitória monetária tem um custo social altíssimo: o colapso do poder de compra, a disparada da pobreza e a corrosão das condições básicas de vida da maioria da população.

Cortar gastos públicos, eliminar subsídios e impor uma desvalorização inicial do peso foram pilares do plano econômico de Milei, que, além de reduzir a inflação, alcançou superávit fiscal. Mas esse “remédio amargo” gerou efeitos colaterais graves: queda real dos salários, aumento do trabalho informal, colapso no consumo e empobrecimento acelerado de setores médios e populares.

Superávit com fome: a crise do cotidiano

O contraste entre os indicadores macroeconômicos e a vida nas ruas é gritante. Embora o peso argentino tenha se estabilizado e os preços subam mais lentamente, os argentinos estão cada vez mais endividados para pagar por comida. Segundo o Instituto de Estatísticas e Tendências Sociais e Econômicas, 91% dos domicílios contraíram dívidas em 2024 — e 58% o fizeram para adquirir alimentos.

A desvalorização nominal inicial seguida de uma valorização do câmbio real transformou a Argentina em um país caro em dólares, mas com salários entre os mais baixos da América Latina. O resultado é uma economia dual, onde apenas setores exportadores e segmentos de alta renda conseguem respirar, enquanto o restante da sociedade vive um processo de empobrecimento contínuo.

O colapso do consumo e o novo padrão de vida

A crise se expressa nas mudanças de hábitos: os consumidores passaram a comprar menos, procurar descontos e priorizar alimentos básicos em pequenas quantidades, frequentemente usando cartão de crédito em vez de dinheiro. O consumo à vista tornou-se um luxo.

Além disso, os aluguéis dispararam, especialmente na região metropolitana de Buenos Aires, onde a média gasta com moradia representa 44,5% da renda dos locatários. Esse dado, ignorado pela cesta de bens usada para calcular a inflação oficial, indica que o índice divulgado não reflete com precisão a realidade da maioria.

A conta dos cortes: saúde, educação e aposentadorias

O combate à inflação foi feito à base de cortes radicais no orçamento público. Obras de infraestrutura, saúde e educação foram paralisadas. Os aposentados — entre os mais afetados — recebem o equivalente a 300 dólares mensais, valor abaixo do mínimo necessário para viver com dignidade. Toda semana, manifestantes se reúnem em frente ao Congresso para exigir reajustes, enquanto Milei promete vetar qualquer projeto que aumente os gastos.

O desmonte do Estado gera uma sensação generalizada de abandono. Sem rede pública capaz de amortecer os efeitos da crise, a população recorre à informalidade, ao endividamento ou à solidariedade familiar para sobreviver.

O risco do “voo de galinha” econômico

A trajetória econômica de Milei guarda semelhanças com planos aplicados no passado recente da Argentina: um choque de corte de gastos que reduz a inflação, mas não resolve os gargalos estruturais do país. A abertura indiscriminada às importações, combinada com uma moeda valorizada, ameaça a indústria local e o emprego.

Especialistas alertam para o risco de o atual ciclo ser apenas um “voo de galinha” — uma recuperação frágil e curta. Sem investimento em infraestrutura, reforma tributária, integração regional e políticas que articulem crescimento com distribuição de renda, a Argentina pode repetir seu histórico de promessas neoliberais que colapsam diante da desigualdade.

O desafio do próximo passo

Reduzir a inflação foi um passo necessário, mas claramente insuficiente. O desafio agora é recuperar a capacidade de consumo da população, reativar o mercado de trabalho com qualidade e restaurar os serviços públicos essenciais.

A pergunta que se impõe é: até quando Milei conseguirá sustentar a política do arrocho, sem romper o tecido social argentino? O “milagre inflacionário” pode se tornar um pesadelo distributivo — e o custo político pode vir tão rápido quanto a queda da inflação.

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Last Update: 27/07/2025