Argentina: “Há certa ficção nessa queda da pobreza”, diz especialista

por Maíra Vasconcelos, especial para Jornal GGN

A pobreza e a indigência, hoje, “são superiores às do governo de Cristina, superiores aos valores da primeira etapa do governo Macri, similares à crise de Macri e ao cenário que administrou, pós-pandemia, Fernández e Massa. Quer dizer, essa queda não é tão extraordinária”, analisou Agustín Salvia.

Mesmo que amplamente celebrado e divulgado pelo atual governo de Javier Milei, a queda considerável nos índices de pobreza e indigência, na Argentina, se lida comparativamente, significa que o país voltou aos patamares registrados durante as épocas de crise dos governos do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) e Alberto Fernández (2019-2023). Além do mais, tanto a pobreza como a indigência, hoje, são superiores aos momentos mais favoráveis dos governos de Macri e da ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015).

Há certa parcela de aposentados e do funcionalismo público, que estão nucleados entre aqueles que caíram na linha de pobreza e logo se recuperaram, mas pertencem ainda a essa nova pobreza, fruto das crises do final do governo de Alberto Fernández, em 2023, e início do ano passado, quando do ajuste econômico de Milei.

“Acredito que (a queda dos salários dos funcionários públicos) irá se acelerar. Esse processo de que as remunerações continuem atrasadas para gerar certa expansão desses trabalhadores ao setor privado, em busca de trabalho. Com o objetivo de continuar diminuindo o Estado”.

Essa análise é parte da entrevista feita pela reportagem do Jornal GGN, com o especialista e um dos maiores referentes do país, o pesquisador Agustín Salvia, diretor do Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica (ODSA-UCA, sigla em espanhol).

A pobreza na Argentina caiu de 52,9%, no início do ano passado, para 38,1%, no final do mesmo ano. A taxa de indigência, no mesmo período, caiu de 18,1% a 8,2%, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (INDEC). Os altos números registrados no início de 2024, são resultado do ajuste fiscal do atual governo. A pobreza é medida segundo o acesso à cesta básica de $1,100 milhões de pesos argentinos, $950 dólares, por mês, aproximadamente, para uma família de quatro pessoas.

Aquele grupo social que caiu na pobreza e na indigência, após a crise do governo de Alberto Fernández, que terminou seu mandato, em 2023, com 211,4% de inflação anual, e após o severo ajuste econômico de Milei, implementado em seu primeiro ano de governo, em 2024, conseguiu se recuperar após certa estabilização da inflação. Resultado da política econômica liberal do atual governo. No entanto, segundo Salvia, ambos indicadores tendem a se estabilizar em níveis de anos anteriores.

Mas a recuperação, que representa 6,9 milhões a menos de pessoas em estado de pobreza, no comparativo primeiro e segundo semestres do ano passado, indica que essa população conseguiu voltar a cobrir os gastos básicos de água, luz, gás e transporte. Principais segmentos econômicos que sofreram a retirada dos subsídios do Estado, com aumentos nos serviços superiores a 300%, anual.

O que significa essa queda da pobreza? Que tipo de pobreza tem diminuído?

Esses 7%, ou 8% de indigência, essa queda, essa indigência está na média do que aconteceu antes de 2023. Na pós-pandemia, 2021, 2022, tínhamos similares níveis de indigência, como os que temos agora. Inclusive, em 2020 e 2019, também tínhamos similares níveis de indigência. Quer dizer, quando estávamos mal com Macri, ou quando estávamos mal com Alberto Fernández e Massa, já tínhamos esses níveis de indigência. A melhora tem a ver com essas crises, que aconteceram no último trimestre do período do governo de Alberto Fernández e Massa, depois do “Plan Platita”. Depois desse processo de assistência econômica eleitoral, do efeito dessa política distributiva das eleições. Daí, derivou um processo de ajuste, de desarmado da bola crítica da economia, e que produziu um aumento de até 20% de indigência. O que acontece é que caiu depois disso. Mas onde caiu? Caiu aos níveis que já tínhamos antes. 

E quando você analisa a pobreza, acontece a mesma coisa. A pobreza já era alta, subiu após o fim do ciclo econômico, da catástrofe econômica do governo de Alberto, após a decisão de liberalização de Milei, o ajuste de Milei. Bem, isso provoca um aumento de até 55% de pobreza, e depois cai a 38%, que é o nível que tínhamos também depois da pandemia. E que é certo, um pouco acima do que tínhamos no fim do período do governo de Macri, de 2018 e 2019, antes da pandemia. 

Mas estamos em níveis onde a melhora é relativa à crise do primeiro trimestre de 2024. A melhora é em relação a esse período. É rápida, é efetiva, tem sido uma queda importante. Mas essa queda tende a se estabilizar em valores anteriores a essa crise. Nos valores depois da pandemia. E nos valores que tínhamos, inclusive, no contexto de crise do governo de Mauricio Macri. E por cima do valores dos melhores momentos de Macri e dos níveis que tinha Cristina Kirchner. Cristina deixa a pobreza em um 29%, 30%, e agora estamos em 38%. Cristina deixa a indigência em 5%, 6%, em 2015, e a indigência agora é de 7%, 8%. 

Quer dizer, são valores superiores aos que tinha deixado o governo de Cristina, superiores aos valores que tinha transitado a primeira etapa do governo de Macri, similares a crise do governo de Macri, e similares ao cenário que administrou, pós-pandemia, Fernández e Massa. Quer dizer, uma queda que não é tão extraordinária. A caída é forte, mas os níveis em que estamos não são tão relevantes. São médias históricas que estávamos tendo nos últimos 15 anos. 

De que tipo de pobreza estamos falando? 

Todos esses indicadores são feitos tomando em consideração a pobreza por renda. Então, essa pobreza mede a capacidade de consumo. Porque é isso o que mede a pobreza por renda, a capacidade de consumo. O que está mostrando estatisticamente falando, é que houve uma melhora, e que essa melhora é parcial e relativa, e que uma parte das classes médias que havia caído na pobreza, neste último ano, em 2024, se recuperou em sua capacidade de consumo monetário. Mas, começa melhorando sua capacidade de consumo, não quer dizer que tenha mais capacidade efetiva de consumo. Se você olha os indicadores macroeconômicos, vai ver que o consumo está estagnado, quase não se move. O nível de consumo, supermercado… o consumo da economia. Por que? Porque as melhoras econômicas do último ano, que fizeram sair da pobreza uma parte da população, foi para cobrir os novos custos fixos dos serviços básicos. Os aumentos de luz, água, transporte, gás. Os serviços tem aumentado mais que o resto dos produtos e o orçamento familiar tem que dedicar mais dinheiro para pagar esses serviços e deixa menos dinheiro para cobrir os gastos correntes.

E os gastos correntes não têm melhorado. Não tem melhorado o consumo de vestimenta, nem o consumo de alimento, nem de viagens, de serviços, de turismo, de esporte. A família tem mais renda, mas também tem gastos mais importantes em matéria de serviço, porque houve uma mudança no sistema de preços. 

Os serviços públicos, produto da quita de subsídios, tem aumentado mais do que tem aumentado o resto dos preços. Então, há certa ficção nessa queda da pobreza. Que, se bem é certo, a situação tem melhorado, em relação ao primeiro semestre do ano passado, mas a situação ainda não é tão boa, em matéria de consumo para essas classes médias, que inclusive saíram da pobreza. E também não é bom para os setores populares, que, se bem tem melhoras nos programas sociais, na “Asignación Universal por Hijo” e nos benefícios do “Cartão Alimentar”, têm menos trabalho informal, produto de que tem menos consumo das classes médias. 

O mesmo pergunto sobre o nível de indigência. Como se mede e o que aconteceu com essa parcela da população?

Um esclarecimento que também é útil. Estamos falando de uma cesta básica de pobreza, de $1,100 milhões de pesos argentinos, 950 dólares, por mês, aproximadamente, para uma família de quatro pessoas. Um valor que, tirando a desvalorização do peso, parece muito, mas que, na realidade, tem pouca capacidade de consumo real. Porque o preço dos serviços e de muitos bens está muito alto. 

Agora, quando falamos de indigência, estamos falando de $450 mil pesos, por mês, de uma família tipo, para não ser pobre extremo. Para não ser indigente extremo. O que isso significa? Para poder cobrir uma cesta básica de alimentos, mas isso significa não ser indigente. E ser indigente significa não poder cobrir essa cesta básica de alimentos, e essa cesta está em 450 mil pesos, 450 dólares, por mês.

Então, quem entrou e saiu dessa situação? Bom, entramos nessa situação, no contexto de aumento de preços, pela liberalização dos preços de dezembro e janeiro. Entrou nessa situação boa parte da população que era pobre, os setores populares que já eram pobres, mas que não eram pobres extremos, tinham um trabalho mais ou menos regular. Não estavam na informalidade extrema, ou na precarização extrema, estavam numa situação de setores de classes baixas com trabalho regular, mas com salários muito baixos. Então, entraram na indigência e quem saiu? Foram esses mesmos. 

E quem ficou na indigência são famílias que têm programas sociais como fonte de renda, ou que carecem de uma inserção econômica ocupacional que lhes de uma renda segura, ou que têm trabalhos eventuais. Hoje em dia, esse segmento mais numeroso, inclusive em quantidade de membros da família, de crianças, ou inclusive de aposentados, que não têm outro apoio econômico, estão nessa situação de indigência. E aqueles que têm conseguido sair dessa situação de indigência, são esses mesmos setores que têm conseguido ou que têm um trabalho relativamente regular, no setor informal da economia, e podem ganhar mais de $500 mil pesos por mês, e obter uma renda que lhes permite, minimamente, cobrir os gastos básicos. Mas são pobres, em outras áreas e dimensões, e não chegam a ter esse $1 milhão ou esses $900 dólares, por mês. 

A pobreza estrutural, como é a variação dessa parcela da população?

Esse número vem aumentando lentamente, durante este período de 15 anos. E aumenta de maneira significativa em momentos de crise. Cada crise deixa uma camada de pobres estruturais. Quando saem da crise, não se recuperam. Então, se com Cristina Kirchner, em 2015, tínhamos 30% de pobreza, entre um 15% e um 20% de pobreza estrutural, quando Macri termina seu mandato, em 2019, já temos níveis de 35% de pobreza, 20% de pobreza estrutural. No atual contexto, onde a pobreza é de 38%, 40%, já temos um 25%, 30% estrutural. E o que é a pobreza estrutural? São pobres que são cronicamente pobres. Que a recuperação não os retira da pobreza. É um piso. Não entram e saem, soa pobres crônicos.

Queria falar sobre dois segmentos específicos da população. Os funcionários públicos e os aposentados.

No geral, a regulação dos funcionários públicos, se bem é heterogênea, em nível nacional, provincial e municipal, são setores que, pelo seu nível educativo e pelas suas defesas sindicais, têm tido sempre melhores salários. No entanto, são os que menos aumento têm conseguido nas políticas de ajuste de Milei. Isso, sem dúvida, significou uma queda na pobreza desses trabalhadores. Sobretudo, na primeira etapa (do ajuste). Na recuperação posterior, esses trabalhadores também estiveram atrás (dos outros segmentos que conseguiram se recuperar). Quer dizer, a desatualização salarial desses setores do funcionalismo público ficou atrasada em relação à queda da inflação. Não ganharam da inflação durante todo esse período. Se bem houve melhoras nos índices de pobreza, esse segmento, assim como os pequenos comerciantes, e trabalhadores não qualificados, têm ainda uma demora nesse processo de recuperação. São os que ainda nutrem esse 38% ou 39% de pobreza.

Sobre os aposentados, é mais claro que, salvo os aposentados da contribuição mínima, que já vinham com um processo de deterioro antes de Milei. O ajuste do primeiro trimestre de 2024, implicou que boa parte desses aposentados fossem também os que nutriram o aumento da pobreza a 54%. E a saída da crise, a queda da inflação e uma nova norma da pauta de aposentadoria, que se atualiza periodicamente, faz com que consigam, justamente por esse aumento mensal, ganhar da inflação. Foram recuperando. Alguns deles saíram da pobreza, mas, assim como os funcionários públicos, esse setor continua nutrindo essa porcentagem de novos pobres que a Argentina atual tem. Ainda não se converteram em pobres crônicos, nem os funcionários públicos, nem os aposentados, mas, eventualmente, poderiam ser, se não conseguem melhorar suas remunerações reais.

No caso do setor público, não é fácil que isso aconteça (a melhora dos salários). Porque as políticas de ajuste se mantêm muito ativas por parte do governo. Inclusive, acredito que irão se acelerar, esse processo de que as remunerações continuem atrasadas para gerar certa expansão desses trabalhadores ao setor privado, em busca de trabalho, quando a demanda apareça. Com o objetivo de continuar diminuindo o Estado, a administração pública.

Os aposentados, sim, é possível que apresentem melhoras, à luz das normativas que estão sendo pensadas. Sobretudo para aqueles que têm uma aposentadoria contributiva. Acho que estão pensando em dar um benefício adicional a esses trabalhadores para diferenciar daqueles que têm aposentadoria mínima ou níveis básicos de aposentadoria, por causa das moratórias, sem terem feito os aportes correspondentes. Mas, de imediato, são núcleos duros de pobreza, desses não-pobres que estamos falando, da nova pobreza que surgiu depois da crise do final do governo de Alberto e Massa, e do primeiro semestre de Milei.

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Last Update: 28/04/2025