Aquisições (des)necessárias
por Heraldo Campos
No começo dos anos 80 do século passado, vi pescadores jogando tarrafa na desembocadura do Rio Mampituba, no conhecido Molhes de Torres (divisa dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina) e que caiam igual paraquedas nas águas, na captura da tainha. Seduzido pelo tipo de pescaria que nunca tinha visto, retornando da viagem para a cidade de São Paulo fui na região do antigo Vale do Anhagabaú e comprei numa loja de tralhas de pesca a maior tarrafa disponível.
Pouco tempo depois, em Ubatuba (SP), numa primeira tentativa de lançamento num quintal com arvore, para treinar, o fiasco foi total porque a rede se enrolou toda nos galhos para espanto dos coitados dos passarinhos. Outras tentativas se sucederam, mas pela pouca habilidade com esse instrumento de pesca (e seu tamanho), constatou-se que a tarrafa era para estar em mãos de profissionais do ramo e acabou virando presente para um amigo bom no serviço. Uma aquisição, na época, entusiasmada, porém desnecessária.
Poucos anos antes dessa experiência, foi comprada uma flauta transversal, profissional, de segunda mão, que estava para venda na oficina de instrumentos de sopro do Bove, no bairro do Cambuci, na capital paulista, onde eram consertados e ajustados instrumentos para músicos famosos, como por exemplo, Hector Costita (músico e compositor argentino), entre outros. Uma compra também animada, porém nunca foi além de ser utilizada para tocar a popular “Asa Branca” de Luiz Gonzaga. Uma aquisição necessária, numa ilusão de virar músico perto dos 30 anos de idade mas, que tempos depois, foi vendido esse nobre (e difícil) instrumento de sopro, para quem dominava de fato o assunto.
Retrocedendo mais ainda no tempo, na época que fazia parte do time de basquete do Clube Atlético Ypiranga (CAY), tive a honra de jogar com meus companheiros numa preliminar contra o time Corinthians, no ano de 1969, onde jogava Wlamir Marques [1] no time principal. Entretanto, no ano seguinte foi “adquirido” um curso de computação, novidade do momento, para formar um programador, o que acabou não se concretizando. Talvez, a melhor necessidade para aquele período, seria continuar no basquete do CAY ou tentar uma transferência para o infantil B do Timão, no Parque São Jorge, time do coração [2].
Recentemente foi adquirida uma escaleta, motivada pelo isolamento (quarentena) durante o período confinado da pandemia do coronavírus, onde a internet induzia a pesquisa de antigas banda de rock, entre elas a americana Steely Dan, onde Donald Fegan tocava escaleta [3]. É provável que essa nova aquisição dure algum tempo e vamos batalhar para seguir um pouco mais, no desempenho musical, do que a bela “Asa Branca”.
Para concluir, uma pergunta: será que parte do povo brasileiro está fazendo “aquisições (des)necessárias” quando vai às urnas para escollher seus representantes no Congresso Nacional ou as escolhas tem favorecido as classes mais abastadas e dos poderosos, que vira e mexe tentam legislar para os seus próprios umbigos? Lembremos que a consagrada urna de votos eletrônica, há décadas, no sistema eleitoral brasileiro, quase sempre é atacada pelos reacionários de carteirinha ou pelos “filhotes da ditadura”, como diria Leonel Brizola.
“Eu cheguei de muito longe/ E a viagem foi tão longa / E na minha caminhada / Obstáculos na estrada / Mas enfim aqui estou” – primeira estrofe da composição “É preciso dar um jeito, meu amigo”, de Erasmo Carlos & Roberto Carlos do ano de 1971, interpretada por Erasmo Carlos e parte da trilha sonora do premiado filme “Ainda estou aqui” de Walter Salles.
Fontes:
[1] “Bola ao cesto” artigo de 16/03/2020.https://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2020/03/bola-ao-cesto-cronicade-heraldo-campos.html
[2] “Tentativas” artigo de 23/12/2021.
https://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2021/12/tentativas.html
[3] “Meu querido Corinthians” artigo de 27/04/2024.
https://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2024/04/meu-querido-corinthians.html
Heraldo Campos é geólogo (Instituto de Geociências e Ciências Exatas da UNESP, 1976), mestre em Geologia Geral e de Aplicação e doutor em Ciências (Instituto de Geociências da USP, 1987 e 1993) e pós-doutor em hidrogeologia (Universidad Politécnica de Cataluña e Escola de Engenharia de São Carlos da USP, 2000 e 2010).
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