A repressão brutal aos protestos de 12 de março em Buenos Aires contra os cortes nas aposentadorias impostos pelo governo de Javier Milei foi descrita por uma manifestante detida como um eco da ditadura militar que assolou a Argentina e o Brasil décadas atrás. Em relato publicado no sítio Resumen Latinoamericano no úlitmo dia 15, Pilar Cortés, uma das presas, narrou cenas de violência policial que remetem aos anos de chumbo de 1964 no Brasil, quando o regime militar sufocou dissidências com prisões arbitrárias, torturas e humilhações públicas. Hoje, na Argentina, a máquina de repressão sob ordens de Milei repete métodos semelhantes contra aposentados, torcedores e estudantes, expondo um governo já que não se preocupa em esconder sua natureza fascista.

Parte de um grupo sem filiação política, Pilar detalhou ao Resumen a escalada da repressão. Segundo a estudante, seu papel era basicamente socorrer vítimas da repressão contra a manifestação que começou como uma marcha pacífica, com cânticos e apoio a idosos vulneráveis, transformou-se em um campo de batalha. Gases lacrimogêneos, tiros e cassetetes atingiram indiscriminadamente os manifestantes, enquanto os policiais gritavam insultos racistas e ameaças de morte. Toda sorte de tortura fora cometida contra os presos, a ponto de uma das presas, uma aposentada identificada pela jovem como “M1.”, de 72 anos e presa com Pilar, recordar a detenção sofrida décadas atrás, em 1972 sob o tenebroso regime militar argentino. “Aquilo parecia a ditadura”, afirmou a idosa. A brutalidade, as prisões sem justificativa e a exibição pública dos detidos pelas ruas de Buenos Aires evocam as marchas forçadas de presos políticos no Brasil de 1964, sob o AI-5, quando o Estado esmagava qualquer oposição.

Os dados concretos reforçam a gravidade do episódio. Segundo o sítio UOL, a ação policial deixou 53 feridos, incluindo a aposentada Beatriz Bianco, agredida com cassetete, e o fotógrafo Pablo Grillo, em estado grave após ser atingido por um cartucho de gás. Foram 124 detidos, dos quais 114 liberados por ordem judicial, que classificou as prisões como violações constitucionais.

Segundo organizações como Organizações como Humans Right Watch, Anistia Internacional e as argentinas, Coordinadora Contra la Represión Policial e Institucional (CORREPI) e Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), desde dezembro de 2023 até o último dia 17, o regime golpista e ditatorial de Milei já contabiliza mais de 300 prisões efetuadas pela repressão, responsável ainda por cerca de 400 manifestantes feridos.

Abaixo, o relato da estudante de jornalismo publicada no sítio Resumen Latinoamericano:

“Como grupo autoconvocado (não pertencente a nenhum partido político), sabíamos que haveria repressão, mas não imaginávamos que seria tanta. Nos preparamos para os gases lacrimogêneos (lenços, óculos de proteção, troca de roupa, etc.), mas não para tudo o que veio depois.

Fomos com a intenção de nos manifestar pacificamente por melhorias nas aposentadorias, impedir a revogação da moratória previdenciária, mas, acima de tudo, para ajudar as pessoas mais vulneráveis que fossem atingidas pelo gás: levamos limões, água com bicarbonato, cremes e outros itens de auxílio. Antes de sair, fizemos uma lista com nossos dados e um contato de confiança para emergências — por sorte.

Chegamos por volta das 17h. Estávamos concentrados de maneira pacífica, com os aposentados e torcedores na linha de frente. Nós um pouco mais atrás, a uma distância prudente. Cantamos e aplaudimos, nada além disso. Conforme a caminhada avançava para os pontos-chave (Congresso ou Plaza de Mayo), a situação ia ficando cada vez mais tensa.

Começaram a surgir disparos de gás vindos de policiais à paisana, ferindo aposentados e todos que estavam ali, sem distinção. Enquanto tentávamos socorrê-los, começamos a ver rostos machucados e pessoas baleadas, sinal de que a situação era mais grave do que prevíamos. Avançávamos pouco a pouco, depois recuávamos, e assim sucessivamente, auxiliando quem mais precisava.

Por volta das 18h30, começamos a ouvir tiros à distância, cerca de uma quadra de nós. Algumas pessoas correram, mas tentamos manter a calma para evitar tumultos. Alguns indivíduos (não sei se eram civis ou infiltrados) começaram a incendiar contêineres de lixo.

De repente, sem aviso, apareceu a Gendarmeria (ou a polícia federal, não consegui distinguir) em motos, atirando contra nós. Começamos a correr, mas, como tenho 7 graus de miopia em cada olho e estava com um único par de óculos quebrado, não consegui. Uma companheira disse que me encolhi no chão. Só lembro dos tiros próximos e de homens enormes com cassetetes vindo em minha direção. Pegaram dois companheiros (‘Y.’ — 31 anos — e ‘L.’ — 30 anos —), outra companheira (‘R.’ — 37 anos —) e outras pessoas. Em um instante, um oficial subiu sobre mim, comprimindo minhas costelas e impedindo que eu respirasse. Ele fez isso por alguns segundos enquanto eu gritava que não conseguia respirar.

Enquanto isso, um policial socava ‘J.’ no rosto, quebrando seu nariz e fazendo-o perder muito sangue. Outro (ou o mesmo, não sei) chutava a cabeça da nossa companheira ‘R.’. E isso é apenas o que eu pude ver.

Nos forçaram a ficar de bruços, com as mãos nas costas e o rosto no chão, enquanto gritavam: ‘Negros de merda, vamos matar vocês, se fazem de defensores dos aposentados’. Outro policial dizia que estava com vontade de dar uns tiros.

Eu via a perna da minha companheira ‘Y.’ tremendo, o sangue de ‘J.’ a centímetros do meu rosto e sentia a tosse de um garoto asmático.

Colocaram braçadeiras de plástico extremamente apertadas em nós, e um homem começou a tremer sem parar — estava tendo um ataque de pânico. As pessoas ao redor pediam que nos soltassem, que atendessem ‘L.’ e o homem em crise. Tentavam filmar, mas os policiais os impediam.

Gritamos nossos nomes, como na ditadura, e, graças a isso e à solidariedade das pessoas, nossos familiares e amigos conseguiram nos encontrar depois.

Nos fizeram caminhar por cerca de seis quadras (mesmo com vários feridos que mal conseguiam andar), passando pelo Obelisco, como se fôssemos uma exibição pública. Enquanto isso, as pessoas nos insultavam, tomavam café, passeavam com seus cachorros — como se tudo fosse ‘normal’. ‘Y.’ estava com o joelho machucado e não conseguia pisar, mas foi forçada a caminhar assim mesmo.

Nos levaram para uma calçada onde algumas vans nos esperavam, junto com uma fila de torcedores também detidos, todos com as mãos presas. Sentaram-nos ali por um tempo e depois nos colocaram dentro das vans apagadas. Ninguém nos dizia para onde íamos nem o que fariam conosco. Nos separaram por sexo e me colocaram junto com ‘Y.’; dentro, já esperavam ‘P.’ (20 anos), ‘T.’ (35 anos), ‘M.’ (28 anos), ‘A.’ (35 anos) e ‘E.’ (29 anos). Depois de um tempo, se juntaram ‘R.’ e ‘M1.’ (72 anos), que tem câncer na língua. Éramos nove no total, quase todas estudantes de nível técnico ou universitário.

‘M1.’, aposentada, havia sido golpeada na mão, na perna e em outras partes do corpo. Ela era a única sem as mãos amarradas.

Ficamos lá por cerca de 1h30 ou 2h até que ligaram a van e nos levaram para um local desconhecido. Perguntamos várias vezes para onde estávamos indo, mas ninguém respondeu.

Chegamos à Comuna 4, onde policiais mascarados nos esperavam. Me aliviou um pouco ver algumas policiais mulheres, com os rostos descobertos. Devia ser por volta de 20h30 ou 21h30.

Nos mantiveram o tempo todo dentro da van. Não podíamos usar o celular, fazer ligações, ir ao banheiro, beber água ou tomar remédios. Duas das meninas tinham transtorno bipolar e precisavam se medicar, mas não permitiram. Nem sequer nos informaram por que estávamos presas.

O perito médico nos examinou lentamente. Pediu que algumas tirassem a calça com a porta da van aberta, mesmo com homens por perto. Os cortes das braçadeiras apertadas já machucavam nossa pele.

Sem ter respostas, tentamos aliviar a tensão conversando sobre filmes, estudos, piadas. Mas também falamos de política. ‘M1.’ nos contou como foi presa em 1972 e como tudo aquilo parecia com a ditadura.

Às 12h30, um advogado apareceu e disse que logo nos deixariam beber água e usar o banheiro — mentira. Mas pelo menos trocaram minhas braçadeiras por algemas mais frouxas.

Algumas conseguiram soltar as mãos e mandar mensagens escondidas sobre onde estávamos. Estava frio, nos abraçávamos como podíamos.

Às 2h da manhã, nos liberaram, após nos obrigarem a assinar um documento em branco. Só queríamos sair dali. Finalmente, pudemos tomar água, trazida por nossos familiares e amigos.

Ao sair, encontramos nosso companheiro ‘L.’, que estava bem. Nos abraçamos todos. Depois, vi minha mãe com os olhos cheios de lágrimas e a abracei como nunca. Pedi desculpas por ter mentido (disse a ela que não iria ao protesto), mas ela respondeu que estava orgulhosa de mim.

Fomos a um hospital fazer exames. Houve dificuldades, mas conseguimos atendimento.

Por fim, cada uma voltou para casa, para descansar de um longo dia de luta cujos frutos esperamos ver em breve.

TODOS SEREMOS APOSENTADOS. NÃO À CRIMINALIZAÇÃO DO PROTESTO. MANIFESTAR-SE É UM DIREITO.”

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Last Update: 18/03/2025