“Bolsonaro está colhendo o que plantou”, resumiu Guilherme Boulos ao visitar a redação de CartaCapital na sexta-feira 18, no mesmo dia – “grande dia” – em que o Supremo Tribunal Federal determinou a instalação de uma tornozeleira eletrônica para vigiar os passos do ex-presidente, proibido de se aproximar de embaixadas estrangeiras e obrigado ao recolhimento domiciliar noturno. Na avaliação do deputado­ do PSOL, a Corte não poderia agir de outra maneira após a conspiração bolsonarista com autoridades dos EUA para impor sanções contra representantes do Estado brasileiro e a economia nacional. Nesta entrevista, o psolista falou sobre o tarifaço de Donald Trump contra o Brasil, seus planos para 2026 e os desafios do campo progressista – tema que aprofunda no livro Pra Onde Vai a Esquerda?, recém-lançado pela editora Contracorrente. A íntegra da conversa, em vídeo, está disponível em nosso canal no YouTube.

CartaCapital: Existe o risco de a tornozeleira eletrônica ser instrumentalizada para reforçar a versão de que Bolsonaro está sendo perseguido pelo Supremo?
Guilherme Boulos: A Justiça não pode pautar suas ações pela narrativa que o bolsonarismo pretende construir. A decisão de instalar a tornozeleira foi acertada, porque, de fato, havia riscos. Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo e grande aliado de Bolsonaro, prestou-se ao papel de telefonar para ministros do STF, tentando convencê-los a devolver o passaporte do ex-presidente e autorizar uma viagem aos EUA, supostamente para ajudar nas negociações da tarifa. Acionei a Procuradoria-Geral da República para avaliar se o governador cometeu crime de facilitação de fuga e obstrução de Justiça. Bolsonaro tenta chantagear o Estado brasileiro. Fazer oposição ao Lula é legítimo, muita gente faz. O que não pode é cometer crime. Agora, aliar-se ao país mais rico e poderoso do planeta para conspirar contra o seu próprio povo, simular uma espécie de sequestro e cobrar, como resgate, a anistia para seus próprios crimes… isso é escandaloso. Bolsonaro está colhendo o que plantou.

CC: Pouco depois, Tarcísio escondeu a foto em que aparecia com o boné do Trump. O que isso revela?
GB: Tarcísio tenta fazer um malabarismo muito difícil. Não é possível fazer um bolsonarismo moderado, isso é uma contradição em si. Em momentos de águas calmas, pode até colar. Mas, quando o bicho pega, é preciso escolher entre defender o Bolsonaro ou as instituições. Se defende um, fica mal com o outro. Por abrir negociação com os EUA, foi chamado de traidor por Eduardo Bolsonaro. Esse vitimismo, por sinal, é o traço mais evidente da covardia bolsonarista. Bananinha, que agora conspira nos EUA, dizia que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF. Na primeira intimação, fugiu do País. Quando ficou frente a frente com Xandão, Jair Bolsonaro pediu desculpas e perguntou se ele queria ser seu vice. Comparem com a reação de Lula diante dos processos da Lava Jato. Vocês viram algum pedido de desculpas ao juiz Sergio Moro? Não, ele o confrontou. Em nenhum momento buscou refúgio em embaixada. Se há algo positivo nesse episódio, é que ficou claro quem é quem, e de que lado cada um está.

PRA ONDE VAI A ESQUERDA? Guilherme Boulos. Contracorrente (144 págs., 35 reais)

CC: Trump realmente se importa com Bolsonaro ou está apenas usando o ex-presidente para defender outros interesses?
GB: É risível imaginar que Trump age por solidariedade a Bolsonaro. Historicamente, os EUA agem para garantir seus próprios interesses econômicos e geopolíticos. Agora, a hegemonia norte-americana está em declínio, e a China caminha para se tornar a principal economia do mundo. Hoje, a principal relação comercial da maioria dos países latino-americanos é com os chineses, inclusive a do Brasil. Os BRICS representam mais do que fluxo comercial: são uma possibilidade real de comércio alternativo ao dólar. Pequim já realiza transações internacionais em renminbi, sua moeda, o que ameaça o privilégio do dólar como moeda global. Esse é o pano de fundo. Poucos dias antes do tarifaço, o Brasil sediou a reunião dos BRICS.

CC: Como o senhor avalia a reação do governo Lula ao tarifaço?
GB: O governo reagiu de maneira correta, altiva e soberana. Toda crise traz riscos, mas também oportunidades. Trump pode, de fato, impor sua tarifa em 1º de agosto, e isso gerará instabilidade econômica. Vários setores da economia brasileira enfrentariam dificuldades. Por outro lado, soberania não se negocia. Além disso, essa crise permite ao Brasil reconstruir um pacto nacional popular. Ou seja, buscar um consenso social, inclusive para que o País possa acumular mais déficits para investir pesado em pesquisa e desenvolvimento, em tecnologia de ponta. É hora de tomar atitudes como quebrar patentes norte-americanas, como as de medicamentos. Esse pacto soberano pode nos levar a um lugar mais avançado do que estamos hoje.

A aliança da direita com o Centrão em pautas impopulares fortaleceu a bandeira da justiça tributária, avalia o parlamentar – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

CC: Recentemente, o senhor liderou um grande ato na Avenida Paulista, pela taxação dos super-ricos e pelo fim da escala 6×1. Há tempos a esquerda não ocupava as ruas. Quais pautas podem reanimar o campo progressista?
GB: Não é só uma questão de agenda, e sim das circunstâncias ideais para emplacá-la. O que fortaleceu a bandeira da justiça tributária no último mês foi a aliança da direita com o chamado Centrão. Eles acharam que podiam fazer tudo. Em uma semana, aumentaram a conta de luz, ampliaram o número de deputados e derrubaram o decreto do IOF, enquanto seguravam a pauta do fim da escala 6×1 e da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais. Isso deu um estalo na sociedade. Foi a primeira vez que a esquerda saiu da defensiva, de forma consistente, durante o governo Lula. Agora, precisamos manter essa onda viva até o ano que vem.

CC: O livro Pra Onde Vai a Esquerda?, que o senhor acaba de lançar, se propõe a dar um “chacoalhão” no campo progressista. É um chamado à ação?
GB: Decidi escrever o livro por uma angústia. A esquerda está na defensiva – não só no processo eleitoral, mas numa defensiva histórica. A extrema-direita está ganhando o debate ao redor do mundo. No Brasil, a esquerda está no governo, mas não está na ofensiva política. Só agora começamos a dar um sinal de retomada. E a obra tenta apontar esse caminho: o que precisa ser feito na guerra cultural, na ­disputa do algoritmo, na batalha territorial, com o pé no barro, para que a esquerda recupere o protagonismo. E, do ponto de vista de visão de mundo, como a esquerda precisa posicionar-se para recuperar a capacidade de imaginar o futuro.

CC: No livro, o senhor aponta dois atalhos perigosos para a esquerda: o centrismo e o sectarismo. Pode explicar melhor essa crítica?
GB: O atalho mais perigoso é o centrismo, até porque tem mais força. É um segmento do campo progressista que diz assim: “A extrema-direita está muito forte, então a esquerda tem de ficar na miúda, esconder suas bandeirinhas”. Não pode falar de escala 6×1, de taxação de super-ricos. Para esses, seria melhor até que os nossos candidatos nem fossem de esquerda. É uma rendição. No livro, faço até uma analogia com o conceito que Lacan chama de “covardia moral”: cair antes da queda. Mas também existe o risco do sectarismo: a ideia de que, como a direita está conseguindo ser antissistema e disputar a indignação popular, a esquerda deveria fazer o mesmo e não aceitar nenhum tipo de negociação, não fazer aliança com ninguém. Se o Lula não tivesse feito uma frente ampla, com Geraldo Alckmin de vice – o que, na época, eu fui contra –, talvez não tivéssemos vencido a eleição. A diferença foi de 2 milhões de votos. É preciso ter um grau de compreensão, de pé no chão, para conseguir se equilibrar nesse fio de navalha.

“Precisamos manter essa onda viva até o ano que vem”, afirma Boulos, ao comentar o recente protesto na Paulista

CC: O senhor conversou com Lula sobre a possibilidade de ser ministro? Aceitaria o convite?
GB: Não acho que seja respeitoso nem razoável entrar nesse tipo de especulação, porque tenho muitos companheiros nos ministérios, e essa é uma definição que cabe exclusivamente ao presidente da República.

CC: Quais são seus planos para 2026?
GB: Há duas alternativas. Uma é disputar o Senado. Nas próximas eleições, serão duas­ vagas, e a chance de o campo progressista conquistar ao menos uma delas é concreta. Mas também existe uma pressão do meu partido para que eu seja candidato à reeleição. Com a votação que tive em 2022, ajudei a eleger outros três companheiros. Existe uma preocupação legítima com o tamanho da bancada, com a cláusula de barreira. Vou ponderar tudo isso. •

Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“Aqui se faz, aqui se paga”’

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Last Update: 24/07/2025