Na segunda-feira 19, Tarcísio de Freitas deve oficializar o anúncio do projeto escolhido para ser a nova sede do governo de São Paulo. Projetado pelo escritório Ópera Quatro, do arquiteto Pablo Chakur, o centro administrativo com fachada espelhada destoará dos antigos edifícios da região dos Campos Elíseos, o primeiro bairro planejado da capital paulista, fundado em 1879. O contraste será ainda maior com a paisagem da Cracolândia, maior cena aberta de consumo de drogas do País, que resiste na região a despeito da intensa repressão policial para dispersar o “fluxo”.

Escolha unânime no concurso promovido pelo governador paulista, o projeto prevê construções com diferentes alturas, articuladas por passarelas. No térreo haverá lojas, pátios, áreas verdes e um calçadão para facilitar a circulação de pessoas entre os prédios e o entorno. Estima-se um gasto de 4 bilhões de reais na parceria público-privada. Ao centralizar todas as secretarias de governo em um único local, Tarcísio aposta na atração de novos empreendimentos, que contribuirão para o esforço de “revitalizar” o Centro, essa área tão sem vida da cidade de São Paulo.

Quer dizer… A região é densamente ocupada, mas não são exatamente esses viventes que o governador deseja ver por lá. Desde a sua concepção, a proposta de transferir a sede do governo mal disfarça o caráter higienista. Tende apenas a aprofundar a gentrificação no Centro, alerta nota técnica divulgada pelo Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, o Labcidade, vinculado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

“O projeto pressupõe demolir ao menos cinco quadras, ocupadas atualmente por cerca de 800 pessoas, segundo os dados do Censo populacional do IBGE de 2022, parte das quais morando em regiões encortiçadas, conforme dados do Censo de Cortiços da Prefeitura de São Paulo de 2014, e demarcadas parcialmente como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) 3 e 5 pelo Plano Diretor de 2014”, observa o estudo do Labcidade. Ao menos 230 imóveis residenciais serão demolidos.

Atualmente, mais da metade das 24 secretarias estaduais não funciona mais no Morumbi, onde fica o Palácio dos Bandeirantes, atual sede do governo. Elas estão espalhadas pelo Centro Histórico, entre as praças da Sé, República, Ramos de Azevedo e o Pateo do Collegio. Segundo o secretário de Projetos Estratégicos, Guilherme Afif Domingos, esses edifícios antigos serão reaproveitados. “Alguns vão receber equipamentos públicos de cultura e outros vão passar por retrofit para virar moradias populares.” Já o Terminal Princesa Isabel, um dos maiores do Centro, deve ser realocado ao lado da Estação da Luz.

Para a população que será desalojada, está prevista a construção de 1,8 mil moradias populares no entorno da “Esplanada Princesa Isabel”, a nova sede do governo, e em todo o Centro devem ser 6 mil habitações. Não há previsão, porém, de quando serão catalogadas essas famílias, muito menos onde e quando serão entregues esses conjuntos habitacionais.

Para o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, professor titular de Planejamento Urbano da USP e professor visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley, “essa megaintervenção vai impedir que se desenvolvam projetos habitacionais populares, inclusive alguns que já estão sendo feitos na região”. O impacto não será apenas sobre essas famílias que devem ser desalojadas, mas sobre milhares de outras que vivem em prédios de classe média baixa na região, cujos aluguéis podem aumentar de forma desenfreada depois que a iniciativa privada assumir o comando.

Ex-vereador da capital paulista, Bonduki também critica a proposta de converter prédios comerciais antigos em moradias populares. “É muito mais difícil fazer esse tipo de reforma. O ideal seria manter esses prédios para uso comercial e aproveitar a região já voltada para habitação, fazer projetos do Minha Casa, Minha Vida para diversas faixas sociais, como tem acontecido no bairro de Santa Cecília.” Essa diversidade de classes é uma característica do Centro que não está sendo respeitada, alerta o urbanista. “Vai gerar especulação imobiliária nos Campos Elíseos e, por consequência, gentrificação.”

Segundo o cronograma, a licitação para a PPP será feita até abril de 2025. Quem vencer o certame ficará responsável pela construção e administração da nova sede. A desapropriação de imóveis comerciais ficará a cargo da construtora. Já as famílias na área de interesse social serão assistidas pelo governo, promete Afif.

Os moradores na rota do despejo lamentam a falta de informações sobre a realocação

A faxineira Núbia Andrade vive com o marido, Lucas Pompeu, e as duas filhas, Maria Eduarda e Valentina, em um pequeno quarto de pensão na região, onde pagam aluguel de 500 reais por mês. O marido trabalha num açougue do Centro. A filha mais velha, de 9 anos, estuda no Colégio Estadual Prudente de Moraes, e a menor, de 2 anos, “fica com uma moça que cobra por dia”. Eles ainda não sabem o que o destino lhes reserva, mas ouviram dizer que a pensão vai fechar e estão preocupados.

Já Juan, ressabiado dono de um mercadinho no térreo de outra pensão, contou que há poucos dias servidores da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) cadastraram moradores para receber um vale-aluguel de 400 reais por mês, em troca de sair voluntariamente do local. Segundo o secretário de Projetos Estratégicos, essa ação “não tem nada a ver” com a nova sede. Foi uma consequência da Operação Salus et Dignitas, deflagrada em 6 de agosto para investigar o tráfico de drogas no Centro. Na ocasião, várias pensões e hotéis foram fechados, sob acusação de abrigarem membros do PCC. “Infelizmente, nesses locais também moram famílias. Para que elas possam se deslocar, elas vão receber esse valor. As desapropriações relativas à Esplanada Princesa Isabel ainda não começaram”, diz Afif.

O deputado estadual Eduardo Suplicy, do PT, observa, porém, que “desde 2005 ações policiais truculentas para reprimir o uso e o tráfico de drogas na região atingem também pessoas em situação de rua, moradores de pensões, cortiços, hotéis e ocupações”. Segundo ele, o novo projeto segue essa mesma linha e avança sem ouvir a população local. Por isso acabou de solicitar uma audiência pública, para que o secretário Afif, o vice-governador, Felício Ramuth, e outros secretários ligados ao projeto prestem esclarecimentos. •

Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Para quem pode’

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Última Atualização: 15/08/2024