Pode parecer estranho ao leitor que digamos que um dos maiores monopólios da história do capitalismo, a empresa que possui a terceira maior avaliação no mercado financeiro mundial, esteja nadando contra a corrente, mas acreditamos que seja o caso. Não por um compromisso com a inovação ou por qualquer tipo de sentimento ético, mas simplesmente porque a Apple chegou atrasada no mercado de inteligência artificial e, no lugar de entrar nessa competição altamente especulativa, resolveu denunciar seus adversários.

Nessa última semana, a Apple realizou seu evento anual com foco em desenvolvedores de aplicativos para seu ecossistema, o WWDC. Como já é tradicional, anunciaram novas versões de seus sistemas operacionais para toda sua linha de produtos. O anúncio da nova interface baseada em vidro chocou muitos designers, num raro erro da Apple nesse departamento, mas esse não foi o evento mais chocante da apresentação. Para nós, e para os especuladores do mercado financeiro, a maior surpresa foi a falta de foco em soluções envolvendo inteligência artificial em suas plataformas, em particular modelos geradores de linguagem, imagem e vídeo. O choque foi tamanho que executivos da empresa tiveram que se explicar ao Wall Street Journal.

Inteligência artificial transformou-se na nova corrida para o ouro dos especuladores. Números tirados não se sabe de onde, já anunciam ganhos gigantescos de produtividade, um corte de 40% nos empregos de colarinho branco, etc. Mas a Apple, até alguns anos a maior empresa de tecnologia do mundo, hoje a terceira maior, parece não estar investindo pesado nesse mercado. A sua frente estão a NVidia, que teve um salto de valor por conta de seus chips de alto desempenho utilizados justamente em aplicações de inteligência artificial; e Microsoft, que só fala em IA há alguns anos e é sócia majoritária da OpenAI, empresa que foi a primeira a chegar ao mercado de grandes modelos de linguagem com o ChatGPT. Por que a Apple ficaria fora dessa e daria margem para seus competidores tomarem seu mercado?

Antes de oferecer nossa hipótese, precisamos destacar mais um dado importante. Além de jogar toda a ideia de “Apple Intelligence”, propalada no ano passado, para o segundo plano, a Apple publicou na primeira semana de junho um artigo científico delineando as limitações desses modelos geradores de texto. Derrubaram a ideia de que eles pensam, ou que tenham alguma consciência sobre a cadeia de caracteres que emitem a seus usuários, algo que já destacamos algumas vezes, com muito menos eloquência e rigor científico, nesta coluna. Aos interessados, o artigo pode ser lido aqui.

O artigo propõe problemas relativamente simples ao modelo, jogos antigos como a Torre de Hanoi. Em sua tentativa de solucioná-lo, o modelo claramente exibe suas limitações, como versões iniciais do ChatGPT não conseguiam responder com precisão a pergunta “Quantos ts há na frase ‘três tigres tristes’?”. Raramente a resposta era 4, mas o modelo sabia que, sintaticamente, precisava colocar um número como resposta e, por isso, costumeiramente alucinava um resultado errado. Essa limitação foi resolvida com modelos que recursivamente analisam suas saídas, mas isso não é suficiente para fazer convergir a solução de um problema como a Torre de Hanoi para oito discos. O artigo, intitulado “A ilusão do pensamento”, questiona que esses modelos estejam de fato pensando, verbo que não é usado somente nas propagandas das empresas que vendem esses modelos, como em todo o debate sobre o tema.

Já comentamos como o próprio termo “inteligência artificial” leva um leigo a conclusões erradas sobre o processo computacional que efetivamente acontece embaixo do capô. Isso não é estranho. Há outras vozes críticas sobre o tema nas quais me inspiro para essas colunas. Estranho que é um monopólio do tamanho da Apple questione de forma tão frontal aquilo que é a menina dos olhos do capital financeiro especulativo, a salvação da lavoura para o capitalismo. O que está por trás disso?

A verdade é que a Apple tem pouco a ganhar desenvolvendo seus próprios modelos, principalmente estando ciente das limitações tecnológicas inerentes da atual implementação das ditas “inteligências artificiais”. Após o êxtase inicial da novidade, entramos rapidamente na etapa de retornos decrescentes (se é que alguma desses empresas como Anthropic ou OpenAI deu algum retorno) e os ganhos que teremos daqui em diante tendem a ser muito pequenos se comparados ao investimento necessário para treinar e experimentar esses modelos. Devemos lembrar que o treinamento de um GPT o3-pro tem custo na ordem de dezenas de milhões de dólares. O custo dessas melhorias iterativas (e residuais) é gigantesco.

Se o custo é elevado para quem já está no mercado, para uma empresa como a Apple, que nunca de fato entrou, é proibitivo. Na nossa opinião, portanto, partiram para a estratégia Sansão e vão tentar derrubar o templo da IA consigo embaixo. A tecnologia é útil, em alguns casos, extremamente úteis, mas está longe de entregar o valor esperado pelos especuladores, que fez Microsoft, NVidia de outras empresas saltarem de valor em dezenas de bilhões de dólares no mercado de ações. 

Essa talvez seja a maior bolha financeira na bolha de conjunto que cresce desde que os bancos foram salvos em 2008 e em 2021 durante a pandemia. Até mesmo Elon Musk investiu em servidores para o Grok AI, após comprar o X

Meta, Google, X, Microsoft, e companhia investiram dezenas de bilhões em suas infraestruturas próprias e levaram um choque inicial quando a chinesa Deepseek mostrou que era possível entregar o mesmo serviço com uma fração do custo computacional. Agora a Apple revela aquilo que já era óbvio para especialistas na área: estamos nos aproximando daquilo que essa tecnologia pode nos oferecer (e pior, não temos um caminho claro de para onde progredir). O curioso é que a empresa também tem um interesse na deflação do setor, para que ela própria não tenha que arcar com os enormes custos de se entrar no mercado agora. A Apple, praticamente a definição de mainstream no mundo da tecnologia, está nadando contra a corrente, ou melhor, o tsunami da inteligência artificial.

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Last Update: 15/06/2025