Jogos de sorte, apostas, ao vivo ou online tornaram-se parte da vida rotineira no Brasil e no mundo. Embora haja limitações legislativas, houve uma avalanche recente de locais de apostas facilmente disponíveis nos telefones ou computadores de qualquer pessoa, seja jovem ou velho, rico ou pobre. Esse fenômeno está preocupando os especialistas em saúde pública.
Um painel de cientistas, liderado pela professora Rachel Thompson, da Escola de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Glasgow, no Reino Unido, discutiu recentemente os problemas de saúde pública associados às apostas na atualidade. As conclusões desse painel foram publicadas na prestigiosa revista médica The Lancet Public Health.
Não há dúvida no meio médico de que os jogos de sorte representam um modo peculiar de entretenimento. Rapidamente, as pessoas tornam-se viciadas nas apostas, à semelhança de drogas ou tabaco. Elas impactam significativamente a saúde e o bem-estar das pessoas, além de afetar suas famílias, seus amigos, seu patrimônio e seus relacionamentos dentro da sociedade.
Mas, diferentemente dos vícios em comida, tabaco ou álcool, as apostas via internet não têm limitação para o seu consumo: acesso ilimitado 24 horas por dia, o preço e os gastos não são claros nos sites de apostas, jogos com desenhos intencionalmente moldados para criar ambientes virtuais de imersão, onde a pessoa se desconecta do mundo ao seu redor, do tempo que está no jogo e da quantidade real de dinheiro já gasto.
Os algoritmos embutidos nesses jogos online permitem aos operadores avaliar continuamente as preferências e as necessidades de cada jogador para poderem modificar a apresentação para cada cliente-alvo.
Os jogos de sorte online transformaram-se na indústria lucrativa de mais rápida expansão no mundo, envolvendo quantidades de dinheiro perdidas pelos apostadores que ultrapassarão 700 bilhões de dólares até 2028. Somente em 2023, a Comissão estimou que, globalmente, 46% dos adultos e 18% dos adolescentes se envolveram com apostas.
A introdução do betting em atividades esportivas é a nova epidemia. A indústria das apostas está seguindo o mesmo roteiro previamente adotado pelas indústrias de substâncias viciantes como tabaco e álcool. Enfatizam eventuais benefícios sociais oriundos do uso de parte (pequena) dos lucros para patrocinar projetos de educação ou saúde, além de, literalmente, empurrar os problemas sociais ou médicos às decisões e às opções individuais dos que escolhem apostar em seus sites.
Essas indústrias exercem enorme pressão sobre as autoridades públicas e governamentais em todos os países, e até nas pesquisas científicas que avaliam os danos dos jogos de sorte. Isso lembra os passos dados pelas indústrias de tabaco no passado. Influenciam assim as leis e limitam qualquer regulamentação de seu uso e acesso.
A Comissão do The Lancet Public Health deixou clara a necessidade de abordar de forma local, regional e global tal epidemia, para reduzir e até eliminar os danos dos jogos de sorte na saúde e no bem-estar futuros das populações vulneráveis.
O vício em apostas é considerado oficialmente uma doença – incluída na Classificação Internacional das Doenças (CID-11) e no Manual de Diagnóstico e Estatísticas da Associação Americana de Psiquiatria-5. A mesma comissão observou a quase ausência de atenção ou de ações governamentais aos efeitos nocivos das apostas, bem como a criação de medidas de prevenção e amortização dos riscos.
Os especialistas recomendam fortemente, independentemente da atraente noção de ganhos dos governos em impostos diretos ou indiretos, uma ação global coordenada antes que se perca totalmente o controle do vício.
Entre as medidas propostas estão a regulamentação efetiva e limitação etária de promoção, marketing e acesso aos jogos de sorte, além da criação de campanhas de esclarecimento e de modelos de suporte e tratamento acessível aos viciados.
As autoridades brasileiras têm a obrigação de atentar para este problema sério que afeta individualmente os apostadores e aprofundam as diferenças sociais em níveis irreversíveis.
Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Apostas: uma doença’.