Poucos dias após o Congresso Nacional ter recuado na urgência da votação do Projeto de Lei 1.904 de 2024, que equipara a interrupção da gestação com mais de 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de violência sexual, parlamentares bolsonaristas colocaram em tramitação outros dois projetos de lei que ameaçam o direito ao aborto legal em casos de estupro.
O deputado Marcos Pollon (PL-MS) também fez um requerimento para apensar outro projeto (1920/2024) ao PL 1904. A proposta de Pollon mira na criminalização dos médicos que fizerem interrupção da gravidez acima de 22 semanas, com penas de cinco a 18 anos de reclusão.
Em 19 de junho, um dia após o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ter adiado o debate sobre o chamado “PL do Estupro”, um grupo de 35 deputados apresentou o Projeto de Lei 2.499/2024. O texto obriga unidades de saúde a notificar a polícia em casos de interrupção da gravidez decorrente de estupro. Uma portaria do governo de Jair Bolsonaro (PL) que estabelecia essa mesma obrigação foi derrubada pelo Ministério da Saúde no começo do governo Lula (PT).
“É uma proposta com viés policialesco, que mais prejudica e afasta as vítimas do serviços de saúde, do que de fato as protege”, avalia Clara Wardi, que é assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) e se dedica ao monitoramento do Legislativo sobre políticas que envolvem direitos sexuais, reprodutivos e violência contra as mulheres.
“Isso pode gerar medo e constrangimento às pessoas que recorrem ao serviço de saúde porque ameaça a privacidade da vítima e o sigilo entre médico e paciente. É importante que esses dados fiquem restritos aos serviços de saúde, que acolhem e amparam essas pessoas, e que isso só vá às autoridades de segurança por escolha da vítima”, explica Wardi.
Esse novo projeto de lei determina também que as unidades de saúde sejam obrigadas a preservar fragmentos do feto e entregá-los às autoridades policiais e judiciárias. Wardi diz que isso é uma “forma de tentar criar provas contra as pessoas que estão acessando o serviço e pôr em dúvida a credibilidade das pessoas que estão notificando o estupro”.
Alguns dos deputados que assinam a proposta também são autores do “PL do Estupro”: Filipe Martins (PL-TO), Carla Zambelli (PL-SP), Delegado Ramagem (PL-RJ) e Mario Frias (PL-SP). Entre os signatários há outros nomes conhecidos da extrema direita bolsonarista, como o ex-ministro da Saúde do governo Bolsonaro General Pazuello (PL-RJ) e a deputada evangélica Clarissa Tércio (PP-PE).
O senador bolsonarista Mecias de Jesus (Republicanos-RR) apresentou o PL 2.524/2024, que altera o Código Civil para reconhecer “direitos do nascituro” e estabelecer a “presunção absoluta de viabilidade fetal a partir da 22a semana de gravidez”. Atualmente a lei não determina um limite de idade gestacional para o aborto legal, que é previsto em casos de violência sexual, risco de vida da gestante e anencefalia do feto.
O monitoramento do Cfemea revela que há 98 propostas legislativas que querem dificultar ou proibir o direito ao aborto no Brasil. Destas, ao menos oito estão “prontos para a pauta”, ou seja, podem ir a plenário a qualquer momento.
A maioria das propostas é assinada por parlamentares do Partido Liberal, de Bolsonaro. “Classificamos em quatro macrotemas: os que aumentam a pena por aborto, os ultrapunitivistas, como ‘PL do Estupro’; os que querem criar barreiras ao aborto legal, solicitando documentos, criando notificações compulsórias contra práticas como assistolia fetal a partir da 22a semana, como é o caso do “PL do Estupro”; os que estabelecem direitos civis ao feto, como o chamado “Estatuto do Nascituro”; e também os que visam passar desinformação sobre o aborto legal, como os que criam o ‘Dia do Nascituro’ ou projetos que querem colocar informação antiaborto nos testes de gravidez de farmácias ou criar palestras sobre supostos riscos em escolas, por exemplo”, explica Clara Wardi, do Cfemea.
O bloco ultraconservador do Congresso tem a bancada evangélica como uma das suas principais forças. Eles puxaram o debate sobre o “PL do Estupro”, que é assinado por uma de suas lideranças, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). Mas o raio-x das propostas, feito pelo Cfemea, revela que evangélicos, católicos e espíritas convergem politicamente quando o assunto é aborto.
Por exemplo, a deputada Cris Tonnieto (PL-RJ), que é católica e ligada à entidade ultraconservadora Opus Dei, ganha em quantidade de propostas antiaborto: ela assina 16. Um desses, o PL 580/2020, está pronto para ser pautado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).
Essa proposta prevê a aplicação do Código Penal a crimes cometidos no exterior por pessoas brasileiras ou domiciliadas no Brasil. Na prática, o PL dificulta o acesso ao aborto em outros países. Um trecho diz “ocorre como o exemplificado, em um grau ainda maior, o crime de aborto, que em alguns países, como a Colômbia, não é mais tipificado ou, se é, está facilitado. Como ficou conhecido por meio de matérias e artigos divulgados pela imprensa, grupos têm se instalado no Brasil e inclusive financiando a ida de brasileiras ao exterior para a prática ignominiosa do assassinato intrauterino”.
Há ainda outros três PLs de autoria de Tonietto que tiveram tramitação entre março e junho deste ano – 566/2019; 1.753/2022 e 4.150/2019. Todos tentam imputar direitos civis ao nascituro, ou seja, ao feto. Atualmente, o artigo 2° do Código Civil brasileiro reconhece que a “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”.
Um dos principais parlamentares antiaborto do Congresso, o senador espírita e pré-candidato a prefeito de Fortaleza, Eduardo Girão (Novo-CE), apresentou dois PLs sobre o tema este ano: 11/2024 e 1.125/2024. Eles querem instituir o “Programa de Conscientização contra o Aborto em âmbito nacional” e “tornar obrigatória a apresentação de boletim de ocorrência e exame de corpo de delito positivo para realização de aborto decorrente de estupro”, respectivamente.