Com o controle da máquina pública e a perspectiva de construir um amplo arco de alianças, tão elástico quanto a sua base de 16 partidos na Câmara Municipal, o prefeito de Porto Alegre tinha motivos para acreditar numa reeleição sem sobressaltos. Após o colapso do sistema de drenagem da cidade em meio às cheias do Lago Guaíba, Sebastião Melo vê-se diante da hercúlea missão de convencer o eleitorado de que não teve culpa na tragédia, a despeito do pífio orçamento reservado nos últimos anos para a prevenção de desastres e a manutenção da rede de bombas e comportas. Além do Centro da capital gaúcha, 46 bairros ficaram submersos. A própria prefeitura estima um prejuízo de 8 bilhões de reais.
Em recente sondagem do instituto AtlasIntel, 59% dos entrevistados reprovam a administração Melo, ante 37% que aprovam. Realizada em meados de junho, pouco depois do desastre climático que assolou o Rio Grande do Sul, a pesquisa ouviu 1.798 eleitores porto-alegrenses. O Datafolha também saiu às ruas e concluiu que 75% dos gaúchos acreditam que era possível evitar uma destruição desta magnitude, 24% acham que não e 1% diz “não saber”. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, o descrédito é ainda maior: 81% dos entrevistados também afirmam que os estragos poderiam ter sido minimizados, enquanto 18% dizem o contrário.
O reflexo do desastre climático começa a ser captado pelas pesquisas eleitorais. Em abril, Melo liderava a corrida municipal com 40% a 42% das intenções de voto, muito à frente da segunda colocada, Maria do Rosário (PT), que tinha entre 22% e 26%, segundo o Real Time Big Data. Em meados de junho, após o dilúvio do mês anterior, as posições se inverteram. A deputada petista teria 30,2% da preferência dos eleitores, enquanto Melo figura com 24,8%, de acordo com uma pesquisa encomendada pela CNN Brasil ao instituto Atlas. A seguir vêm Any Ortiz (Cidadania), com 9,1%, Comandante Nádia (PL), com 8,5%, e Juliana Brizola (PDT), com 8,2%.
Esse novo cenário mudou, inclusive, as propostas e estratégias de campanha. Temas que não eram tão debatidos em eleições anteriores, como uso e ocupação do solo, plano urbanístico, saneamento básico, sistema antienchentes e manutenção das casas de bombas, passaram a ser prioritários para os 1,3 milhão de habitantes de Porto Alegre.
Vereador, vice-prefeito, deputado estadual, o goiano Sebastião Melo tornou-se prefeito de Porto Alegre em 2020, ao derrotar Manuela D’Ávila, do PCdoB, em uma eleição tumultuada e repleta de fake news. Após vencer a disputa, foi condenado pela Justiça Eleitoral por distribuição irregular de santinhos e por divulgar nas redes sociais uma pesquisa falsa, na véspera do segundo turno. Punição leve, sua coligação foi obrigada a pagar multas. Ao tomar conhecimento da decisão, Manuela protestou: “Que no futuro o prêmio pela divulgação de notícias falsas, pesquisas falsas e caminhões distribuindo mentiras não seja a prefeitura da nossa cidade”.
Se tinha chance de se reeleger no primeiro turno, Sebastião Melo agora terá de suar a camisa para derrotar Maria do Rosário
Agora, Melo trabalha para minar candidaturas da chamada “terceira via” e afina o discurso de que o desastre na cidade deveu-se ao excesso de chuvas, não havendo nada que pudesse ter sido feito para minimizar os impactos. No auge da crise, aliados chegaram a sondá-lo sobre a possibilidade de desistir da candidatura. Recusou, por entender que a desistência soaria como uma “confissão de culpa”, dizem fontes próximas ao prefeito. Questionado por CartaCapital, ele afirmou, por meio de nota, que está dedicado à agenda da prefeitura de Porto Alegre, com foco na reconstrução da cidade, e que “só vai se manifestar no aspecto eleitoral após as convenções partidárias”. Líder do governo na Câmara Municipal, o vereador Idenir Cecchim, do MDB, não retornou aos pedidos de entrevista.
Mesmo com a percepção majoritária de que as autoridades municipais falharam na contenção das cheias do Guaíba, o prefeito derrotaria Rosário no segundo turno, por 43,7% a 38,2%. A deputada petista está em seu sexto mandato parlamentar. Foi vereadora, deputada estadual e ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos no governo Dilma Rousseff. Disputa pela segunda vez a prefeitura de Porto Alegre. Em recente entrevista ao UOL, disse que sua campanha estará voltada ao debate de projetos inovadores na dimensão ambiental e de infraestrutura. “Vamos ampliar o sistema de proteção às águas para tornar nossa cidade mais segura, para que a população não tenha mais medo de chuva.”
Professor do Departamento de Ciência Política da UFRGS, Benedito Tadeu não acredita que Melo retire sua candidatura nem que venha a ser substituído. “Há alguns nomes que podem ser tentados, mas me parece que não existe outro candidato à direita com o enraizamento popular necessário. A proximidade das eleições cria enormes dificuldades para a consolidação de um nome alternativo, mas na política nada é impossível.”
Até as enchentes de maio, prossegue o especialista, Melo era um candidato imbatível, com grandes chances de vencer no primeiro turno. Tinha uma ótima aceitação nas áreas periféricas da cidade, de menor renda, além de amplo apoio do empresariado, sobretudo nos setores de construção civil e transportes coletivos, e a simpatia dos bolsonaristas. Após as cheias do Guaíba, perdeu boa parte do seu capital político, mas o cenário segue indefinido. “O prefeito ainda tem uma pequena vantagem no segundo turno, mas ela pode ser revertida. Lembremos que Lula, nas eleições para a Presidência da República, e Edegar Pretto, na disputa pelo governo estadual, venceram o último pleito em Porto Alegre. O jogo segue aberto.” •
Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Depois da tormenta’