A advogada Elisabeth Lopes publicou, no último dia 22, um artigo intitulado O ajuste de contas com a Democracia, no Brasil 247, em que caracteriza a denúncia farsesca da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Jair Bolsonaro e outros 33 integrantes da cúpula bolsonarista como “boa notícia”. Diz ela:

“É imprescindível que os brasileiros estejam atentos sobre qualquer prática que possa resultar em prejuízo da democracia e dos rumos políticos do país.

Todavia, a atitude de resistência torna-se cada vez mais árdua e, por vezes, exaustiva contra as investidas dessa oposição corrosiva, mentirosa, vazia, mas faminta de poder. Tem sido difícil conscientizar parte expressiva do povo sobre a variedade de êxitos já conquistados pelo atual governo com relação a aspectos fundantes para a reconstrução de uma sociedade inclusiva, que acolha seu povo de modo sustentável e justo.”

Se “tem sido difícil conscientizar parte expressiva do povo” sobre o que ela chama de “conquistas” do governo federal, de que forma atropelar os direitos democráticos e apoiar uma caçada tão mal-disfarçada quanto a que sofre Bolsonaro pode ajudar nessa tarefa? Aliás, tem ajudado?

Dado que a própria autora reconhece a existência de uma crise, questionamentos como esses seriam os primeiros a serem feitos. O fato de uma parcela da esquerda não os fazer demonstra o tamanho do desespero que acomete esse setor, que, movido pelo medo, desloca-se cada vez mais à direita, arrastando consigo uma parte das bases do campo.

Por exemplo, aproveitando a menção ao golpe de 2016, a esquerda deveria considerar, antes de formular qualquer política, o que estão fazendo hoje os setores que orquestraram aquela arbitrariedade. Bolsonaro e a extrema direita surgiram e se fortaleceram com a mobilização da direita para derrubar a ex-presidenta petista, mas não foram eles os arquitetos originais do golpe. Já a burocracia judicial, o Supremo Tribunal Federal (STF) e a PGR desempenharam papéis centrais durante toda a trama, culminando na queda de Dima Rousseff, na prisão de Lula e na erosão do regime político.

A esquerda precisa lembrar que a PGR que hoje conta histórias para justificar a ofensiva da ditadura judicial contra Bolsonaro é a mesma que emitiu pareceres contrários a indicação de Lula ao Ministério da Casa Civil, um “desvio de finalidade”, auxiliando a acusação golpista que a presidenta petista sofria de “crime de responsabilidade”. Sai Rodrigo Janot, entra Paulo Gonet, mas nada mudou, a política é a mesma, fundamentalmente, porque os “donos” da PGR são os mesmos: o imperialismo.

O golpe de 2016 escancarou o domínio da burocracia judicial pelas forças imperialistas, um conluio que não se desfaz com mera troca de nomes na cúpula da PGR. O Judiciário, atuando como ponta de lança dos ataques ao governo Dilma, ao lado dos monopólios de imprensa e da direita tradicional — ambos braços do imperialismo —, abriu caminho para que os verdadeiros beneficiários da ofensiva golpista consolidassem sua ditadura contra o País.

Os monopólios foram os grandes vencedores da queda de Dilma: a Petrobrás alvo de uma verdadeira pirataria, a política neoliberal — derrotada nas urnas em 2014 — foi imposta, trazendo resultados avassaladores para a classe trabalhadora e os governos petistas, que sustentavam o nacionalismo latino-americano contra a ditadura imperialista, foram neutralizados. Não se trata de uma conspiração abstrata, mas de uma operação concreta, em que o poder judicial deixou claro seu papel de cão de guarda potências estrangeiras, inimigas do País. Por isso, independentemente de quem ocupe a cadeira da PGR, os interesses que movem essa estrutura continuam nas mesmas mãos. Se na época o alvo principal era o PT, hoje o alvo é o bolsonarismo, mas aqui também, é preciso lembrar o famoso ditado “pau que bate em Chico, também bate em Francisco”.

A famigerada Lei da Ficha Limpa não começou colocando Lula na cadeia e impedindo o povo de elegê-lo. Os primeiros atacados pela justiça foram os sempre folclóricos direitistas. Se a lei foi totalmente inútil para seu objetivo declarado de impedir a corrupção, foi plenamente bem sucedida em seu verdadeiro propósito original, de permitir a intervenção do judiciário no regime político.

Até sua normalização, dezenas de candidaturas foram arbitrariamente barradas. O que, porém, trouxe mais impacto para o povo, essas dezenas (talvez centenas) de candidaturas impedidas pelo Judiciário? Ou uma candidatura: a de Lula em 2018? Claro que a última teve consequências mais desastrosas do que todas as outras que a antecederam, o que inclusive está diretamente ligado à ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República.

Além disso, ao mergulhar na campanha contra a “corrupção” sem se atentar para o que estava fazendo, o que a esquerda pequeno-burguesa fez foi habituar as bases da esquerda à política direitista. Tudo isso precisa ser lembrando porque quando Lopes celebra a denúncia da PGR contra Bolsonaro como um suposto “ajuste de contas”, adota a mesma tática derrotista.

A autora apoia um setor da burocracia em uma campanha muito direitistas, voltada a reprimir direitos políticos (não só de Bolsonaro, mas de todo o povo brasileiro), ignorando que essa mesma instituição, ao lado do mesmo STF e agindo da mesma forma, impulsionou a ascensão do bolsonarismo. Há uma contradição evidente: como confiar nas ferramentas de uma máquina que ajudou a destruir o regime constitucional para agora defendê-la?

Quando a esquerda que aplaude tais medidas, somente reforçam os mecanismos que, no passado, a derrubaram, revelando menos uma estratégia de resistência e mais uma rendição ao autoritarismo que diz combater. Pior, habituam a população com a ideia de que a título de “defesa da democracia”, está certo você ameaçar jogar na cadeia alguém que for acusado de “atentar contra as instituições”, não importa o que exista de concreto.

Junte-se a isso o fato de que o caso pelo que Bolsonaro está sendo acusado é uma farsa grotesca e o que teremos uma população habituada a ser oprimida, especialmente pelo judiciário, vendo um líder político relativamente popular sendo perseguido enquanto a vida está cada vez mais cara e difícil. Se existe “tempestade perfeita”, é essa que a esquerda pequeno-burguesa está criando, com a combinação de repressão política severa e arrocho na economia.

É preciso mudar drasticamente ambos, mas para o debate em questão, abandonar em primeiro lugar o medo da extrema direita e fazer o enfrentamento político, mobilizando a população para a luta, com atenção ao fato de que a direita dita “civilizada” e democrática pode estar por baixo do ponto de vista eleitoral, mas conta com o apoio do imperialismo e domina a burocracia estatal, sobretudo na Justiça. Não é fortalecendo ela que a esquerda vai “conscientizar o povo”, mas se separando e desenvolvendo uma luta independente. Do contrário, o que tem dado errado até aqui fatalmente irá evoluir para uma conjuntura muito mais perigosa.

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Last Update: 25/02/2025