Apocalipse nos Trópicos, o documentário de Petra Costa que aborda a destacada relação entre evangélicos com a política no Brasil nos últimos anos, é competente na reconstituição da história recente do Brasil. O filme destaca, com mérito, como os fatos que colocaram o país nos trilhos do extremismo de direita foram alimentados pela instrumentalização da fé cristã, particularmente a evangélica, como estratégia política de convencimento por apoio e manutenção do poder – tema insistentemente tratado neste Diálogos da Fé desde 2017.
A qualidade da produção, contudo, não elimina tropeços na abordagem. Vários deles já apontados em comentários na imprensa e nas redes sociais: a outorga ao pastor Silas Malafaia do papel de porta-voz do segmento; a homogeneização dos evangélicos na figura dos pentecostais; a suposição de que apenas essa parcela apoiou o bolsonarismo; o contraste simplista entre “católicos da Teologia da Libertação” — vistos como redentores — e evangélicos, pintados como vilões; a exposição da “teologia do domínio” como teoria conspiratória.
O resultado, infelizmente, é mais desinformação e intolerância do que debate sobre o lugar da fé na esfera pública. Neste texto, contudo, quero me deter em um aspecto pouco abordado nas críticas, e que talvez tenha sido o que mais me incomodou: a leitura alegórica, fundamentalista e conservadora do livro do Apocalipse como eixo explicativo da relação fé-política no Brasil.
Há séculos o Apocalipse carrega má fama. Seu texto hermético, repleto de símbolos, alimentou a ideia de que seria um catálogo de desgraças futuras. Daí o termo “apocalipse” ter virado sinônimo de ruína, aniquilamento, desgraça, fim do mundo. Não por acaso, o nome é também título de outra obra cinematográfica, ganhadora da Palma de Ouro em 1979, Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, um épico sobre a terrível Guerra do Vietnã.
Essa visão nasce de uma leitura literalista da Bíblia, que ignora contexto histórico, cultural e as ciências bíblicas (arqueologia, a literatura comparada, a história, a filologia, as ciências humanas e sociais). Desta leitura brotou o imaginário do fim do mundo decretado por Deus, com a derrota de Satanás e de todos os seus representantes e a salvação dos crentes em Jesus. Por isso já foram marcadas várias datas para o fim do mundo, detectados vários anticristos e identificadas distintas práticas e costumes alinhadas com a visão do mal contida no texto.
Apocalipse nos Trópicos abraça exatamente essa chave hermenêutica: tal como certos fiéis veem a “besta” do capítulo 13 no Papa, o filme atribui alegoricamente “aos evangélicos” a destruição do Brasil.
A opção pelo fundamentalismo eclipsa outra leitura, mais esperançosa. Estudos bíblicos mostram que o Apocalipse é uma carta, escrita cerca de 90 d.C. por João, exilado em Patmos, dirigida a comunidades cristãs perseguidas pelo Império Romano. A linguagem cifrada servia para driblar a censura.
O texto denuncia um sistema que, legitimado pela religião, concentrava poder econômico, explorava os pobres e impunha culto ao imperador. Ao mesmo tempo, animava os cristãos a resistir, apontando para “um novo céu e uma nova terra”
Todas as visões de João relatadas no livro diziam respeito à situação de perseguição em que se encontravam as pessoas das igrejas naquele momento. Há referências muito duras ao Império Romano e seus apoiadores, como a figura da Besta que emergia do mar (trajeto das invasões romanas) e do anticristo. E são muitas, também, as representações da esperança.
A carta foi escrita para e sobre aquele exato tempo. Não para pregar uma destruição futura, mas para afastar o medo e espalhar esperança no presente. Sua mensagem central é de esperança ativa contra impérios opressores — inclusive os de hoje: o poder econômico-financeiro excludente, o autoritarismo, a intolerância, as milícias políticas. Há, sim, quem invoque Jesus para sustentar tais impérios, como mostram apoios religiosos a Donald Trump e, aqui, a Jair Bolsonaro. Mas também há quem resista.
Reduzir o Apocalipse a presságio de destruição é por demais simplista. E, no fim das contas, se coaduna com o tratamento igualmente simplista e descontextualizado dado aos evangélicos em Apocalipse nos Trópicos.
Uma pena! A ideia de tomar o livro do Apocalipse é muito boa, pois vivemos tempos muito semelhantes àquele da carta joanina. O Apocalipse convida a superar o medo e, pela fé, vislumbrar um futuro de justiça. Essa deveria ser a mensagem para hoje — e o debate que o documentário poderia ter provocado.