A aproximação evangélica com a extrema direita em um projeto de poder no Brasil é retratada no novo documentário de Petra Costa, “Apocalipse nos Trópicos”, que pode ser assistido pela plataforma de streaming Netflix. A diretora de “Democracia em Vertigem”, que concorreu ao Oscar 2020, explica em 110 minutos como a igreja evangélica planejou o futuro do Brasil ao pregar o fim do Estado laico para erigir o “Estado de Cristo”.

Para mostrar as entranhas dessa realidade, a produção tem a grande virtude de acompanhar um dos mais proeminentes pastores desse “planejamento do Brasil Evangélico”, Silas Malafaia.

Logo na abertura do documentário, junto ao clã Bolsonaro, Malafaia brada em um evento próximo ao Congresso Nacional: “Estamos aqui para declarar: o Brasil esquerdopata não vai incendiar o Brasil, não.”

Aqui já é dada a pista sobre o que muitos de nós já sabemos, mas que a diretora agora traz em imagens: a influência dos pastores e o conflito que criaram para fundamentar sua ideologia.

A narrativa faz bem em lembrar que esta influência evangélica se enraizou em praticamente todos os lugares e chegou em áreas carentes com a oferta de respostas onde nem mesmo o Estado alcança. Isto permitiu aos pastores intervir em diversos aspectos da vida cotidiana, inclusive direcionando indicações políticas.

Leia mais: PGR pede condenação de Bolsonaro pela tentativa de golpe de Estado

Em tempos mais recentes, as igrejas também passaram a capitalizar para si a melhora nas condições de vida das famílias brasileiras promovida por políticas públicas. Neste ponto, as igrejas evangélicas, além de serem reconhecidas pelos fiéis por esta prosperidade, passaram a lucrar mais em doações em dinheiro. O dízimo é revertido em templos de oração suntuosos, presença na televisão e até mesmo em luxo, com jatinhos particulares das instituições.

A diretora ressalta que em 40 anos os evangélicos saltaram de 5% para mais de 30% da população brasileira — o que observa ser uma das mudanças religiosas mais rápidas da humanidade. E com essa mudança houve também a mudança do pensamento da população a partir do que é pregado.

Em trecho de pregação na igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo (Advec), é possível ver como Malafaia nutre a ideologia da extrema direita. Ele ataca o marxismo e a Escola de Frankfurt de forma superficial para concluir que são censurados pela esquerda, que visa exercer o “controle do pensamento através do politicamente correto”. Dentro da igreja jovens são filmadas com uma bandeira escrita: “Clube Antifeminista”.

Dominionismo

Para expor o quanto o líder da Advec se empenhou em ganhar influência nacional e expandir seu poder, é apresentado o seu apoio a Lula na eleição de 2002, uma aproximação que não vingou. Nas eleições seguintes, Malafaia esteve com Serra e Aécio até chegar em Jair Bolsonaro.

Ao se deparar com o deputado federal que dava ‘voz aos ódios mais profundos do país’ — como coloca Petra —, o pastor encontrou consonância entre suas ideias e as de Bolsonaro para formar uma chamada “nacionalidade nacionalista cristã”.

Nesse ponto, Bolsonaro abraça a religião da esposa, Michele, é batizado e passa a evidenciar seu nome do meio, Messias. A campanha a presidente é bem-sucedida por meio do apoio evangélico e das manobras que tiraram Lula da disputa eleitoral, em 2018.

Leia mais: Quatro documentários para entender o golpe de 2016 

Como exposto, é a falta de capacidade de Bolsonaro, representado como homem comum, que faz com que ele seja vendido aos fiéis como instrumento de Deus. Em muitas cenas, Malafaia se gaba de suas cobranças e influência sobre o presidente.

Aqui, Petra consegue explicar um ponto central desse movimento teocrático encampado por Malafaia: o “dominionismo” (ou Teologia do Domínio), que prega a participação e o controle por parte dos cristãos das mais diversas instituições e cargos de liderança na sociedade.

A política, nesse caso, desponta como o principal meio de captura para os evangélicos. A ação é similar a de lobistas, que agem para impor a vontade do capital privado sobre as decisões e instituições públicas.

Apocalipse evangélico

O “domínio” do Estado brasileiro, portanto, foi alcançado ao elegerem Bolsonaro. No entanto, a pandemia de Covid-19 mostrou o quanto o grupo que cercou o presidente abusou da fé do povo ao não investir em vacinas e defender medicamentos sem eficácia. O resultado é destacado: mais de 700 mil mortes no Brasil, o 2º maior número em todo o planeta.

Assim, surge o apocalipse evangélico, no qual os pastores interpretam o último livro da Bíblia de forma maniqueísta ao transportá-lo para a realidade política brasileira. Com isso, vendem a necessidade de um combate que leve as instituições às últimas consequências, mesmo que se valham de alguma maldade considerada menor.

Leia mais: A vitória de Democracia em Vertigem

Este seria um mal necessário para combater um mal maior que, no limite, são as instituições e pessoas que impedem a fundação de um Estado teocrático que almejam.

O deputado Sóstenes Cavalcante, então líder da bancada evangélica na Câmara dos Deputados, evidencia o quanto o plano evangélico na política surtiu resultado. Ele diz que a bancada passou de cerca de 50 deputados, em 2002, para 142 deputados.

Além da eleição presidencial e para o Congresso Nacional, parte dessa batalha passou pela nomeação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Imagem: Reprodução

Combate ao comunismo e ‘golpe’

O sempre presente “fantasma do comunismo” também faz parte desse jogo e esteve presente na boca de líderes religiosos antigos e ainda está na boca dos atuais. No Brasil, este medo foi difundido pela ditadura militar, mas as origens do ataque remetem aos Estados Unidos, onde os políticos de direita sempre tiveram influência.

Os EUA enxergavam como ameaça o avanço da Teologia da Libertação (movimento católico de esquerda) na América Latina nas décadas de 60 e 70.

Com isso, a cineasta enxerga que desde então o plano de domínio evangélico é trabalhado pela aproximação com a extrema direita. As origens desse voto conservador cristão tiveram berço por aqui nas pregações do evangelista norte-americano Billy Graham no Maracanã, em 1974, e passaram pelo envio de missionários dos EUA para ministrar aulas de inglês e religião a congressistas do Brasil.

Voltando para os tempos atuais, Petra mostra o quanto desse preconceito contra comunistas e esquerdistas foi instigado para prejudicar Lula e o eleitorado que o acompanha. A maquinação entre o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol levou Lula a prisão, mas após as ilegalidades serem reveladas, o líder de esquerda foi solto para o desespero de Malafaia e Bolsonaro.

Ambos então iniciaram um processo para peitar instituições com medo de uma derrota eleitoral. Jair chegou a promover um desfile de tanques de guerra na Esplanada dos Ministérios e passou a afrontar e ofender membros do STF em eventos da extrema direita. Ali, o germe da tentativa de golpe de Estado já estava sendo alimentado, com o pastor e o presidente sinalizando não ser possível uma derrota para Lula.

Leia mais: Ato de Bolsonaro evidencia esvaziamento político e público em meio a julgamento no STF

A partir das pesquisas de intenção de voto a favor de Lula, o documentário passa a mostrar a máquina de ofensas e fake news da extrema direita trabalhando, bem como seus efeitos dentro dos meios religiosos. Para Malafaia esta seria parte da “guerra santa” que seus seguidores deveriam travar, ainda que confrontasse os próprios ensinamentos divinos e as leis da terra.

A intensa campanha em colocar Lula — defensor contumaz do Estado laico — como inimigo dos evangélicos o fez direcionar uma carta pública aos fiéis e a participar de cultos. Por fim, ele venceu as eleições pela terceira vez.

Como é muito bem retratado, a derrota eleitoral não foi aceita por Bolsonaro e pelos pastores, que insuflaram fiéis contra o resultado das urnas. A consequência disso, com apoio de muitas igrejas, foi vista em acampamentos em frente aos quarteis generais e na depredação do 8 de Janeiro.

Ao final, com as imagens da destruição de Brasília, Petra Costa deixa um recado para muitos que apoiaram a sanha golpista ou embarcam no papo de pastores. A diretora explica que em grego a palavra “apocalipse” não significa o fim do mundo, mas sim um desvelar (uma revelação), “a chance de abrir os olhos”.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 15/07/2025