A saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris tende a relançar a corrida pela exploração de petróleo e gás. Pior para o mundo, que experimenta a cada dia novos recordes de aquecimento. Pior para nós. O Brasil abriga ao menos cinco áreas sob risco de desaparecimento em um curto espaço de tempo. Recife é uma delas. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a capital pernambucana figura na 16ª posição entre as cidades mais ameaçadas pelas mudanças climáticas.

Não é a única. Em Atafona, no município de São João da Barra, litoral norte do Rio de Janeiro, o apocalipse está em curso. Lá, o desgaste provocado pela erosão causada pelo avanço do mar de até 2,7 metros por ano destruiu mais de 500 construções, enquanto 14 quarteirões foram submersos. A Baía da Babitonga, em Joinville, Santa Catarina, corre contra o relógio. As pesquisas indicam que a região pode desaparecer até 2050 em razão da elevação do nível do oceano. Situada no litoral nordestino entre Pernambuco e Alagoas, a Costa dos Corais assiste a um acelerado processo de extinção das barreiras por conta do branqueamento da espécie e do aquecimento das águas. Também é dado como certo o fim do Pantanal, se nada for feito para impedir as queimadas e a seca extrema que castigam o bioma nos últimos anos. “Se continuarmos com o aquecimento global e com os desmatamentos, provavelmente perderemos o Pantanal até 2070. Estudos mostram que, desde 1985, o bioma sofreu redução de mais de 30% de sua área, porque as chuvas estão diminuindo”, afirma o climatologista Carlos Nobre, referência mundial nas pesquisas sobre aquecimento global. O especialista menciona ainda a urgência em reverter a extinção dos corais, que abrigam até 25% da biodiversidade oceânica.

O branqueamento dos corais é um fenômeno global, devido à superluminosidade solar, levando os arrecifes a um nível de estresse agudo até a morte. Em 2024, em decorrência do que os pesquisadores chamam de quarta onda do branqueamento, mais de 80% das espécies da Costa dos Corais morreram. “Esse prenúncio foi dado há anos como um alerta em relação aos combustíveis fósseis. Ao contrário do que estamos vendo, o mundo deveria diminuir o número de licenciamentos para exploração de petróleo e gás. É um problema que debatemos em todas as COPs, está em todos os eventos sobre clima, não é novidade para ninguém”, salienta o biólogo marinho Vinícius Nora, gerente de Clima e Oceanos da ONG Instituto Arayara. “A gente viveu com os mares em febre durante 13 meses entre 2023 e 2024. A temperatura, mês a mês, de forma consecutiva, só aumentava. Estamos assistindo ao resultado disso, o fim dos corais.”

Recife, a capital pernambucana, pode tornar-se inabitável em poucas décadas

Segundo o especialista, se a temperatura alcançar os 2 graus Celsius de elevação como está previsto até 2050 é certa a morte de 99% dos corais no mundo todo. “Os líderes globais negociam o desaparecimento de 70% a 90% dos corais. Se 1,5 grau Celsius representa a morte de 70% a 90% desses organismos marinhos, acima disso é praticamente a extinção. Sem falar que, geralmente, a ciência projeta algo que, muitas vezes, a situação é pior, ou sai do controle, e o dado real é outro”, diz Nora.

Em Atafona, no Recife e na Baía de Babitonga, os efeitos da crise climática são bastante parecidos, ameaçando destruir esses locais devido à elevação do nível do mar, de inundações e ocupações desordenadas do solo. Desde a década de 1960, Atafona sofre com um crescente desequilíbrio ambiental, com a perda de sedimentos e da água doce provenientes do Rio Paraíba do Sul, represado em vários momentos. Os sedimentos serviam como uma espécie de barreira natural que impedia o avanço do nível no mar na região. Sem esse recurso, o local passou a ter grandes ressacas e destruição. Associada a isso, houve uma exploração imobiliária acentuada, com construções de casas e condomínios de veraneio. “Essa ocupação indevida destruiu restingas, áreas que seriam um anteparo entre o mar e o continente. É sempre bom identificar o que é o efeito da mudança climática e o que é uma pré-vulnerabilidade climática, fruto da ação humana desordenada. E isso acaba provocando esses efeitos”, destaca o pesquisador Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental.

Distante 320 quilômetros da capital fluminense, Atafona fica na foz do Rio Paraíba do Sul, considerado o segundo maior delta do País e a hidrovia mais importante da Região Sudeste. A bacia abastece mais de 180 municípios. Desde o fim da década de 1950, o fluxo do Paraíba tem sido desviado, reduzindo significativamente o curso para o oceano e a carga de sedimentos que impediam o avanço do nível do mar. “Esse volume de água que foi reduzido também diminuiu a quantidade de sedimentos que eram carreados, levados para a região do delta do Rio Paraíba do Sul. Esse fluxo de água com sedimentos estabilizava a costa, formava uma barreira que protegia toda a região. Aí, o mar começou a entrar com mais força e prejudicou toda a área, causando erosão costeira”, explica André Ferretti, da Fundação Grupo Boticário e integrante da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.

Consequência. Os desmatamentos apressam a agonia do Pantanal. Daqui a pouco a Costa dos Corais terá de mudar de nome. Babitonga está cercada – Imagem: iStockphoto e CBMT/GOVMT

Segundo o pesquisador, Atafona tem perdido uma média de 3 metros de território ao ano e, em alguns períodos, como em 2008 e 2009, essa perda chegou a 8 metros. A tragédia anunciada é digna de uma paisagem de filme de terror. Por baixo das dunas que separam a praia do continente estão centenas de residências, mansões, hotéis, postos de gasolina, escolas, igrejas, barcos e um farol histórico. As ondas do mar também engoliram uma ilha onde moravam 300 famílias de pescadores, a 200 metros da costa. A tragédia ainda é responsável pela morte de 90% dos manguezais, hábitat da população de caranguejos. “As histórias da Atafona a gente conhece há mais de 50 anos. Quais foram as políticas públicas implantadas pelos governos do estado e municipal para enfrentar esses tipos de coisas? Nenhuma. Ao contrário, a cidade estimulou a construção de condomínios e prédios na região, com isenção de impostos, e a mesma coisa acontece no Recife e em Joinville”, critica o ambientalista Pedro Aranha, da Coalizão pelo Clima.

O caso do Recife é emblemático e consta na lista da ONU como uma das cidades que podem ficar inabitáveis em decorrência da crise climática. A capital pernambucana é margeada pelo Rio Capibaribe e as pequenas ilhas têm construções erguidas quase na água. Essa moldura recifense não é nova, existe desde os primórdios, ainda na construção da cidade, no século XVI, mas tem se consolidado ao longo do tempo, como se não houvesse amanhã. A exploração imobiliária parece não se preo­cupar com o dado do IPCC e continua a inaugurar arranha-céus às margens do rio e à beira-mar. E, claro, tudo isso não aconteceu sem a destruição de restingas e manguezais que resguardam a zona costeira e reduzem a força da água, diminuindo os problemas de erosão, e as matas ciliares, essenciais para proteger os rios e manter os canais de drenagem naturais.

A cidade está apenas 4 metros acima do nível do mar, o que a torna uma espécie de barragem permanente, afetada pelo aumento do nível do mar e sob risco de rompimento a cada chuva intensa pela baixa topografia rodeada e de áreas de alta declividade que direcionam a água para os pontos mais baixos. Para além do avanço dos oceanos e das construções afortunadas às margens do rio ou do mar, Recife é repleta de morros, comunidades com grande densidade demográfica que sofrem na pele os efeitos de eventos extremos, sobretudo em períodos de chuvas intensas, como aquela de maio de 2022, com saldo de cerca de 50 mortos e milhares de ­desabrigados. “As condições da vida humana vão ficar inviáveis no Recife. E não é só uma questão do alagamento. Ainda vai demorar para a cidade ficar debaixo d’água, mas vai chegar um momento, creio que na próxima década, que você vai dar descarga no seu banheiro e a água vai voltar, não vai dar mais para lavar uma louça, para tomar banho. Vai ter tanta água poluída e misturada que não vai ter mais como fazer o tratamento, pois vai estar tudo contaminado. O volume nas tubulações vai ser tão grande que a água vai submergir. E tem também o fato de o aquecimento dos oceanos mudar as correntes, o que vai gerar todo um desequilíbrio no sistema hídrico sem precedentes. O aquecimento da temperatura da Terra e dos oceanos e o degelo vão gerar as enchentes que causarão essa tragédia”, prevê Aranha.

Atafona, Babitonga, a Costa dos Corais e o Pantanal também figuram na lista de regiões ameaçadas

O sistema de drenagem é outro problema a ser enfrentado no Recife. A cidade não suporta um volume grande de chuva – rapidamente fica alagada e os deslizamentos começam a fazer vítimas. Com a previsão anunciada pelo IPCC e os efeitos práticos e trágicos da crise climática sentidos na capital pernambucana, a prefeitura desenvolve, há mais de dez anos, projetos voltados para mitigar os danos, como o Promorar, Programa de Requalificação e Resiliência Urbana em Áreas de Vulnerabilidade Socioambiental. Financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e com cooperação técnica do governo holandês, o programa prevê a urbanização integrada, com obras de macrodrenagem, abastecimento de água, saneamento e pavimentação. “Temos um problema histórico que não será resolvido da noite para o dia. Mas temos um conjunto de obras que começa a produzir efeito. Vai desde reservatórios sobre pavimento, parques alagáveis, comportas, diques, em que a gente vai conseguir atingir a redução de 50% no volume da bacia do Rio Tejipió, a maior responsável pelos alagamentos no Recife”, explica Beatriz Menezes, secretária-executiva do Programa Promorar. “Não é milagre, mas todo ano a gente vai ver os impactos das chuvas serem cada vez menores.”

Assim como em Atafona e no Recife, a Baía da Babitonga sofre com a elevação do nível do mar, destruição da vegetação costeira e ocupação irregular do solo. “É uma região muito suscetível a eventos extremos, a inundações, tanto por conta do avanço do mar e da força das marés quanto pelas chuvas que se somam à força do oceano. É um problema causado por questões geográficas e pelo alto volume de chuvas”, diz Ferretti. •

Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Apocalipse em curso ‘

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Last Update: 23/01/2025