Não fosse a xenofobia, ­Donald Trump poderia chegar à cerimônia de posse na Casa Branca em 20 de janeiro embalado por uma música famosa do Furacão 2000. “Tá dominado, tá tudo dominado”, diz o refrão. Desde a inquestionável vitória nas urnas, em novembro passado, o republicano tem presenciado um festival de genuflexões a seus pés, tanto no setor privado quanto no público. A resistência é quase nula. Há uma corrida para ver quem adere mais rápida e apaixonadamente às maluquices do futuro presidente. É difícil catalogar na história dos Estados Unidos um momento de tamanha prevalência de uma corrente política. O trumpismo deixou de ser marginal, alvo de chacota, para se consolidar como a corrente dominante da cultura norte-americana, enquanto a oposição partidária e na sociedade civil nem sequer consegue juntar os cacos. Quem vai resistir?

Neste novo ambiente, coube à vice-presidente Kamala Harris, derrotada nas eleições presidenciais, supervisionar a cerimônia de certificação do vencedor no Capitólio na segunda-feira 6. Segundo Harris, a democracia é resiliente (a ver), mas “a vigilância deve ser constante”. Se, em 2021, a cerimônia de confirmação de Joe Biden foi interrompida por golpistas pró-Trump, inflamados pela falsa alegação de eleição roubada, desta vez o Congresso ratificou a vitória de Trump e de seu vice, J.D. Vance, sem contratempos. Após verificar o processo que também atestou sua derrota, a vice-presidente em fim de mandato disse em uma breve coletiva de imprensa que desempenhar seu papel no processo foi importante para manter a democracia e a transferência pacífica do poder. “Fiz o que fiz durante toda a minha carreira, levar a sério o juramento de apoiar e defender a Constituição dos Estados Unidos. Hoje, a democracia da América manteve-se firme.” Em uma publicação na rede X, o ex-vice-presidente Mike Pence, alvo de ameaças de morte enquanto presidia a certificação da eleição de 2020, elogiou o “retorno da ordem e da civilidade” ao processo. Harris, definiu Pence, é “particularmente admirável” por presidir a certificação de uma eleição perdida.

Pouca gente compartilha, no entanto, as mesmas convicções. Menos de 24 horas após o ritual no Capitólio, Mark ­Zuckerberg considerou apropriado anunciar que a Meta, dona do ­Facebook, ­Instagram e WhatsApp, estaria alinhada a Trump na iniciativa de “pressionar os governos ao redor do mundo que estão impondo mais censura às plataformas”. Bem ao estilo trumpista (ou bolsonarista), Zuckerberg atacou supostas “cortes secretas” latino-americanas dedicadas a tolher a “liberdade de expressão” e instou a Casa Branca a combater os “inimigos” em qualquer parte do globo. Para não deixar dúvida a respeito dos novos tempos, a Meta vai abandonar a política de checagem de fatos e, a exemplo do X, instituirá o liberou geral para racistas, homofóbicos e criminosos em geral exercerem o “direito” de despejar qualquer barbaridade nas redes sem punição. Uma semana antes, o jovem bilionário havia promovido ao comando da área de política Joel Kaplan, o mais republicano dos executivos do grupo. Não bastasse, anunciou, na segunda-feira 6, a inclusão de Dana White, controlador do ­Ultimate Fighting Championship e trumpista fanático, no conselho de administração.

Do setor privado às instituições públicas, a rendição é quase completa

Em entrevista ao canal de tevê Fox News na terça-feira 7, Trump tripudiou do neoaliado. A mudança de rumo da Meta, declarou, resultou “provavelmente” das ameaças que havia feito contra a companhia durante a corrida presidencial. “A Meta sentiu-se ameaçada pela minha ascensão e, por isso, desistiu de fiscalizar a desinformação”, afirmou, ao reforçar a tese de que grandes empresas de tecnologia são hostis a ele e estimulam a censura de vozes reacionárias.

Não é surpresa também que a influência de Elon Musk tenha pesado na decisão da Meta. O homem mais rico do mundo, dono do X (antigo ­Twitter), SpaceX e Tesla, tem sido um crítico ferrenho do que considera um sistema que “suprime a liberdade de expressão”, alegando que as plataformas estão “sufocando as vozes conservadoras e favorecendo a esquerda radical”. Após a doação de 130 milhões de dólares para a campanha republicana, Musk foi chamado de “supergênio” por Trump e de presente ganhou um cargo no governo, o chamado Departamento de Eficiência Governamental (Doge), com o objetivo de cortar 2 trilhões de dólares ou mais do orçamento federal. Em resumo, destruir o que resta do Estado norte-americano. Após a decisão do colega do Vale do Silício, Musk não titubeou e comemorou em seu perfil no X a mudança de postura de Zuckerberg. Mais tarde, Linda Yaccarino, CEO da plataforma, também celebrou. Foi “uma jogada inteligente do Zuck”, escreveu, antes de convidar outras plataformas a seguir o exemplo. “Agora que o X mostrou o quão poderoso é, espero que outros sigam o caminho.”

David Daley, autor de Unrigged: ­Como os Americanos Estão Lutando para ­Salvar a DemocraciaAntidemocrático: Por Dentro da Conspiração de 50 Anos da Extrema-Direita para Controlar as Eleições Americanas, lembra que, nas vésperas da campanha de 2024, as plataformas de redes sociais haviam começado a recuar nos sistemas de checagem e regulamentações, o que torna a decisão recente mais do que esperada. “Zuckerberg até tentou resistir, mas foi pressionado e agora chama Trump de ‘um cara durão’. Musk estará no governo. E se voltarmos oito anos, quando Trump foi eleito pela primeira vez, o Washington Post dizia em seu editorial que a democracia morria na escuridão. Em novembro, com Jeff Bezos à frente, o jornal recusou-se a apoiar um candidato presidencial. Tudo isso deixa claro que os novos senhores da tecnologia, profundamente conservadores, não estão ao lado da democracia.”

Frágil. O rito da confirmação de Trump como presidente foi conduzido por Kamala Harris. O republicano promete perdão aos golpistas do Capitólio – Imagem: Brent Stirton/Getty Images/AFP e Anna Moneymaker/Getty Images/AFP

As lideranças das big techs, observa Daley, anteveem o poder que podem acumular ao se alinhar com figuras autoritárias. “Quando você se opõe a isso, o medo se instala. Em 2020, Zuckerberg, por meio de sua fundação, distribuiu subsídios para ajudar cidades e vilas a financiarem a infraestrutura necessária para uma eleição durante a pandemia, mas Trump não gostou nada disso. Sob pressão, Zuckerberg recuou. A verdade é que esses bilionários de poder e influência não querem arriscar.”

O autor também faz um paralelo entre a postura de Trump e a extrema-direita nos EUA com os plutocratas ao redor de Vladimir Putin. “Existe um medo real de que, se não apoiarem o regime atual, perderão o que têm ou estarão sob escrutínio. E esse é um dos maiores desafios que enfrentaremos nos próximos quatro anos ao tentar evitar o autoritarismo. Quem terá coragem de se levantar e impedir isso? Se ninguém tiver a coragem ou a influência necessária, quem poderá fazer frente? É difícil olhar para a mídia, para o cenário empresarial ou político e ver um líder com autoridade, credibilidade e coragem para se impor neste momento. O que estamos vendo agora é um grande número de covardes tomando o caminho mais fácil e saudando seu novo líder.”

Em troca dos favores que concedem a Trump, essa mesma elite bilionária se vê diante de um mundo de privilégios. De contratos públicos milionários à eliminação de regulamentações que protegem a sociedade dos perigos de suas tecnologias (como veículos autônomos, bots e drones movidos por Inteligência Artificial descontrolada), sem contar o aumento colossal no consumo de eletricidade e o poder de negociação praticamente ilimitado, agora legitimado pelo próprio Estado.

David Daley, analista político: “Um grande número de covardes tomou o caminho mais fácil”

Trump sabe que para garantir sua sobrevivência política é preciso ir além – e ele tem avançado como um trator. Dos quatro processos criminais aos quais inicialmente respondia, o republicano obteve a suspensão de um deles e o arquivamento de outros dois. Resta apenas a condenação em Nova York, pelas 34 acusações de falsificação de registros comerciais, relacionadas ao pagamento feito para silenciar a atriz pornô Stormy Daniels. Mesmo assim, o futuro presidente obteve uma vitória parcial: Juan Merchan, juiz responsável pelo caso, anunciou na sexta-feira 3 que o presidente não será preso, mas que a sentença final será proferida antes da posse. Os advogados do republicano correm para anular a decisão.

À revelia ou por causa de suas promessas mais delirantes e controversas, da criação de campos de concentração para migrantes indocumentados ao plano de forçar economicamente o Canadá a se tornar o 51º estado americano, Trump conta com o apoio de Wall Street. Os investidores ainda apostam que as promessas da campanha serão cumpridas só até a página 2. Para seguir com o plano adiante, o republicano tem o que precisa: garantiu a presidência da Câmara dos Deputados com a reeleição de Mike ­Johnson, ainda que sob protesto de resistentes extremistas do Partido Republicano, e a liderança do Senado, que estará sob o comando de Vance a partir do dia 20.

O que se desenha, portanto, é um cenário no qual os gigantes tecnológicos, endinheirados de Wall Street e uma fraternidade que reúne o Judiciário e a extrema-direita serão respaldados pelo poder político, e se tornarão não apenas protagonistas nos próximos quatro anos, mas os mestres de um novo sistema que tende a favorecer ainda mais a concentração de poder e riqueza e almeja mudar radicalmente o ­mapa-múndi e o que se entende até agora por democracia nos Estados Unidos. •

Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aos pés do imperador’

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Last Update: 09/01/2025