Ao invés dos trabalhadores, uma revolução ‘LGBTQIA+’?

Na última terça-feira, o portal de notícias Brasil 247 publicou uma coluna intitulada A força política do ativismo identitário dos hermanos no enfrentamento do fascismo, assinada pelo jornalista Moisés Mendes. No texto, o colunista busca reduzir o papel da luta de classes no enfrentamento ao golpe neoliberal em curso na Argentina, e tanto da luta política como sindical. Diz ele:

“Desde que assumiu, Javier Milei já enfrentou pelo menos cinco grandes manifestações de rua. Lideradas no começo por sindicatos, piqueteiros e movimentos sociais, com um distanciamento estratégico do kirchnerismo.”

Ora, aqui fica evidente uma questão chave. Na Argentina, o setor que aglutina amplos setores dos trabalhadores é o kirchnerismo. Este, no entanto, por sucessivas capitulações, perde espaço político, e permite o avanço da direita, inclusive a vitória de Milei e do golpe neoliberal naquele país, que permanece em curso. O kirchnerismo, ao invés de mobilizar suas bases decididamente pela derrubada do governo golpista inimigo dos trabalhadores, tem uma atuação apagada, burocrática. Assim, não é que as manifestações tenham um “distanciamento estratégico do kirchnerismo”, mas que o kirchnerismo não adere a uma ofensiva contra o governo, e assim perde popularidade. Prossegue Mendes:

“Pois a Argentina teve no sábado uma marcha histórica, com estimativa de 1 milhão de pessoas, certamente a de maior impacto político. E não foi acionada pelo sindicalismo, pelos piquetes ou por ativistas da educação e tampouco pelos políticos.

Foi liderada pelos movimentos LGBTQIA+. É um marco, que instiga e causa desconfortos até nas esquerdas. Gays, lésbicas, trans e todos os que se sentem atacados pelo fascismo branco e hétero levaram às ruas um grito que ultrapassa as questões identitárias.

Tanto que a caminhada se chamou Marcha Federal antifascista e antirracista. Foi uma resposta aos ataques de Milei às pessoas LGBTQIA+ em Davos. Quando tentou vincular gays a pedofilia. Quando alegou que não existe feminicídio na Argentina.”

A estimativa de Mendes é extremamente inflada, embora tenha sido de fato uma grande manifestação. O marco, contudo, levantado pelo colunista, nada mais é do que um sinal da confusão presente no cenário político argentino. Essa manifestação não tinha uma pauta concreta de reivindicações, e mesmo a oposição a declarações do governo não é algo que se traduz numa oposição concreta à política de Milei. Em outras palavras, a confusão política do ato, e os setores que o convocaram, o que compõe o cenário da confusão, são um ponto perfeito para a introdução de uma política da burguesia na manifestação, o que se verificou de fato.

Trata-se não de um desenvolvimento racional, coerente do movimento, mas da cooptação do movimento, que se transforma numa manifestação inofensiva, identitária. A questão da mulher deixa de ser sobre a condição social da mulher, e passa a ser caso de polícia, de repressão ao “feminicídio”, destacado do homicídio para ressaltar o caráter punitivo da política, e para distanciar o movimento de algo real. Mendes demonstra isso:

“Os movimentos decidiram ir para a rua e os partidos foram atrás. Os grandes jornais argentinos, desde os de direita, Clarín e Nación, aos de esquerda, como Página 12 e El Destape, todos convergiram para a mesma conclusão: ativistas LGBTQIA+ estão assumindo protagonismo no combate ao fascismo.”

Ou seja, a política da esquerda para o movimento é a mesma que a da direita. Não há conclusão prática qualquer, é uma repetição da análise da imprensa pró-imperialista. O tal “combate ao fascismo”, sem os sindicatos, sem uma caracterização operária ou de esquerda, mas “LGBT”. Um movimento artificial impulsionado pela burguesia, que o caracteriza em termos positivos, justamente por não haver oposição entre um e outro. Fato evidenciado por Mendes também é a tentativa de substituição da esquerda, das organizações dos trabalhadores, pela fanfarra identitária:

“Mas onde está o desconforto? Na constatação, por frações das esquerdas argentinas e também brasileiras, de que a ação política LGBTQIA+ pode estar ao lado de forças históricas resistência ao avanço da extrema direita, com o mesmo peso dessas forças. Tem gente que acha estranho.

Sindicatos e partidos terão de compartilhar espaços com entidades que reúnem gays, lésbicas, trans, bis, agêneros, queers.”

Ou seja, para Mendes, o movimento de massas, da classe operária, que tudo arrasta quando se move, poderia ser substituído pela Parada Gay, que teria o mesmo peso que aquele. Se foi um ato tão importante, onde está o ataque da imprensa burguesa, imperialista, à “revolução LGBTQIA+” de Moisés Mendes? Ele simplesmente não existe, e é reforçado por Mendes, que faz questão de ressaltar o “distanciamento estratégico do kirchnerismo”, este, sim, acossado pela burguesia. Mendes já estabelece a substituição de um pelo outro:

“Os movimentos identitários assumem tarefas que eram até agora da esquerda dedicada à explicitação dos conflitos de classe. Uma esquerda raiz que se queixa, e muito, da dispersão de energias pelo ativismo dos identitários e pelo que genericamente chamam de cultura woke.”

E qual seria a grande vitória da “revolução LGBTQIA+”?

“Milei finalmente admitiu que a mobilização o incomodou e tentou remendar o que disse.”

Ora, algo sem qualquer substância.

“O movimento LGBTQIA+ pode conseguir o que a velha esquerda, abalada pela crise do peronismo kirchnerista, não vinha conseguindo.

Pode ser o agregador de forças dispersas, que vinham tendo boa performance de rua, mas eram incapazes de conter a fúria e o ódio de Milei contra mulheres, gays e negros e de fragilizar as bases políticas que o sustentam na tentativa de destruição do Estado.”

A Parada Gay, é claro, é o maior agregador de forças dispersas na sociedade. Naturalmente, não devemos lembrar da existência de centrais sindicais, partidos operários. A forma de enfrentar o governo neoliberal que destrói a economia argentina é uma grande marcha colorida, sem qualquer política, ou melhor, com a política de aceitar as “individualidades”, composta por uma minoria social ínfima. É claro que vai dar certo. Conclui Moisés Mendes:

“E o Brasil, que proveito pode tirar dessa politização de movimentos que expandem seus alcances para fora dos limites das questões de gênero e de grupos? Ninguém está dizendo que devem tentar copiar, mas desfrutar dessa inspiração.

A deputada Erika Hilton, que é muito mais do que uma voz trans, pode ajudar a perseguir respostas, com os mandatos e os movimentos LGBTQIA+. A esquerda tradicional pode se abalar, mas fazer o quê?”

A luta política, para Mendes, deve ser deixada para ongueiros ligados ao imperialismo, como Erika Hilton, e os movimentos LGBT, profundamente conectados a organizações internacionais, como a USAID. Não para os trabalhadores.

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