Em audiência que marcou o início do julgamento do caso Leite vs. Brasil, na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a procuradora Ana Paula propôs, à luz da reinstauração da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a celebração de um pacto positivo entre representantes do governo e das Forças Armadas para elucidar definitivamente os casos de vítimas do regime ditatorial.
Ana Paula foi ouvida pela Corte Internacional como presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), reinstalada nesta quinta (04/07) pelo governo Lula, após ter sido desmantelada e extinta durante o governo de Jair Bolsonaro, em 2022.
A audiência, segundo a própria Corte IDH, tem como pano de fundo as detenções arbitrárias e tortura contra os militantes políticos Denise Peres Crispim e Eduardo Leite, o Bacuri, e a execução extrajudicial de Eduardo Leite, em 1970.
“Não é possível que o país continue nessa resistência a informações cruciais como essas que estamos falando, ou pelo menos à entrega, ao destino dos corpos, às retificações de assentos de óbito, e uma mudança de posicionamento no judiciário brasileiro”, afirmou a procuradora e presidente da CEMDP.
À Corte Internacional, Ana Paula enfatizou a necessidade de continuar o trabalho de reconhecimento das vítimas, busca pelos corpos e pagamento de indenizações. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) foi criada pela Lei 9140/95, “para ser o que os organismos internacionais chamam de autoridade independente para o enfrentamento do legado de violência do Estado”.
“Essa lei era muito tímida porque não reconhecia exatamente que era [violência] por responsabilidade do Estado, ficava implícito, mas isso não chegou a ser dito em momento algum”, manifestou a procuradora.
Exemplo desses gargalos elencados pela procuradora está na origem da Comissão (CEMDP), que emitia, inicialmente, atestados de óbito formais sem detalhar a causa, local ou circunstâncias das mortes, focando apenas em militantes políticos e excluindo outras vítimas como indígenas, camponeses e crianças.
Ainda, a Comissão seguia critérios restritivos, tendo confirmado apenas 434 mortos políticos, um número que não reflete a realidade, que inclui cerca de 10 mil vítimas de várias origens.
Nessa seara, Ana Paula ressaltou a importância da Comissão de Anistia, que, apesar do nome “equivocado”, atuou para fins de reparação. Criada com critérios mais amplos em 2001 no governo FHC, permitiu que pessoas atingidas de qualquer modo pela ditadura, mesmo sem ligação direta com a militância política, pleiteassem indenizações e reparações do Estado.
“Mas à medida que o país avançava com as medidas de transição, também cresciam as resistências a essas medidas. Então, logo em seguida, vem todo o contexto histórico que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff”, relembrou Ana Paula.
O caso Leite vs. Brasil
A audiência ouviu também a vítima Denise Crispim, presa nos idos de 1970, mantida no DOI-CODI de São Paulo e torturada inúmeras vezes enquanto estava grávida de um relacionamento com o militante Eduardo Leite, mais conhecido como Bacuri.
De acordo com as investigações, Bacuri foi o preso que mais sofreu tortura no regime ditatorial, chegando a ser executado extrajudicialmente em uma propriedade do delegado Fleury.
“Eduardo Leite foi o primeiro entre as vítimas das grandes violências perpetradas pelo estado ditatorial a ser reconhecido pela CMDEP. Porém, novamente, no MPF, no âmbito criminal, o pedido de Denise Crispim por justiça não encontrou ressonância”, reiterou a procuradora.
A luta por justiça, segundo Ana Paula, enfrentou obstáculos como o arquivamento do caso mais de uma vez. “O cenário mudou após a condenação do Brasil no caso Gomes Lund, em 2010, levando a novas investigações criminais”.
Ainda assim, o caso de Eduardo Leite foi arquivado novamente em fevereiro de 2024, devido à prescrição e à dificuldade em identificar autores vivos das violações, muitos dos quais já falecidos.
“Mais uma vez, Denise não se deu por vencida e obteve desta corte uma recomendação para que o caso fosse reaberto”.
Para Ana Paula, situações similares no país ocorrem porque “ainda existe um pacto de negação por parte dos ex-agentes da ditadura, e o tempo decorrido dificulta cada vez mais as investigações”.
Veja a audiência completa do caso Leite vs. Brasil: