Ultrafarma e cinismo: quando a pós-verdade se torna mercadoria

Por Antonio Sérgio Neves de Azevedo

Enquanto a lamparina de Diógenes busca honestidade, o Brasil caminha às cegas entre escândalos, impunidade e cinismo institucional. Diógenes de Sínope, filósofo cínico que percorria Atenas com sua lamparina acesa à procura de um homem honesto, ainda hoje nos interpela. Sua vida despojada, marcada pelo desprezo aos luxos e pela coragem da verdade, a parrhesía, expunha um dilema que permanece atual: o embate entre ética, poder e sociedade. Hoje, a mentira deixou de ser exceção; tornou-se método de governo, mercadoria de mercado e prática cotidiana.

Nesse contexto, Michel Foucault lembrava que o cinismo não é apenas filosofia de palavras, mas de vida: é viver a verdade em público, confrontando a hipocrisia da cidade. Essa coragem se perde quando discursos são moldados para agradar, mascarar ou manipular. A pergunta de Diógenes ecoa com ainda mais intensidade: é possível encontrar honestidade em um mundo em que até a verdade virou mercadoria?

O cenário global é exemplar. A guerra entre Rússia e Ucrânia é menos disputa territorial e mais guerra de narrativas: Moscou fala em “desnazificação”, Kiev em “resistência heroica” e o Ocidente em “defesa da democracia”. Cada versão, cuidadosamente construída, transforma-se em produto político, difundido digitalmente e consumido como verdade conveniente. A rivalidade entre Estados Unidos e China também se trava nas narrativas, seja no comércio, na tecnologia ou no domínio da inteligência artificial e da transição energética. Até a crise climática, que deveria ser pauta de sobrevivência planetária, tornou-se palco de especulação: promessas ambientais viraram “ativos verdes” para alimentar mercados, enquanto florestas queimam e povos vulneráveis seguem desamparados.

No Brasil, a manipulação da verdade não é menos corrosiva. Escândalos em série marcam o cotidiano nos últimos tempos: joias retidas em aeroportos, denúncias de tráfico de influência em estatais, manipulações judiciais, irregularidades em contratos públicos. A corrupção deixou de ser acidente administrativo para se tornar engrenagem previsível de governos, empresas e partidos.

O caso mais recente e escandaloso é o da Ultrafarma e da Fast Shop, revelando um esquema bilionário de sonegação fiscal e evasão de divisas, sustentado por suspeitas de corrupção ativa e passiva em diferentes instâncias do governo de São Paulo. Apresentada durante anos como símbolo de inovação no setor farmacêutico, a empresa operava um sofisticado mecanismo de fraude: manipulação contábil, contratos fictícios, transferências ilegais para paraísos fiscais e pagamento sistemático de propinas a servidores públicos. Auditores fiscais concursados da Secretaria da Fazenda foram cooptados para atrasar fiscalizações, liberar licenças e fornecer informações privilegiadas.

Segundo dados da Operação Ícaro do Ministério Público de São Paulo, o esquema arrecadou cerca de R$ 1 bilhão em propinas desde 2021, pagas mensalmente aos fiscais. Mais grave: a fraude não se limitava à empresa e seus executivos. Evidenciava uma simbiose perversa entre setor privado e poder público, em que o interesse coletivo foi sequestrado para alimentar privilégios e enriquecer ilícitos.

Essa naturalização da mentira se reproduz no cotidiano. O consumidor que celebra preços artificialmente baixos, o investidor que ignora lucros sem origem clara, o eleitor que normaliza o “jeitinho” como atalho legítimo, todos participam, em maior ou menor grau, da engrenagem. É o cinismo de um tempo em que a mentira não choca: ela é esperada. Diferente do cinismo de Diógenes, que era coragem da verdade, vivemos hoje o cinismo da indiferença moral.

O caso Ultrafarma, pela sua dimensão e pela cumplicidade de servidores públicos envolvidos, revela a degradação institucional. Quando agentes públicos, cuja função deveria ser proteger o erário, se tornam parte do esquema criminoso, a confiança no Estado de Direito se esvai. A fraude deixa de ser exceção e passa a ser regra, corroendo as bases do pacto social.

Se Diógenes ressurgisse hoje, vagaria com sua lamparina não apenas por Kiev, Moscou ou Washington, mas também por Brasília, São Paulo e Curitiba, atravessando desinformação nas redes sociais, tribunais lenientes e campanhas digitais que reduzem crimes estruturais a “questões técnicas”. Sua busca revelaria a ausência de honestidade mínima em tempos saturados de discursos.

O retorno à parrhesía não é retórica, mas prática efetiva. No caso Ultrafarma, significaria punir corruptores e corruptos, reforçar mecanismos de controle interno e questionar a cultura política e econômica que transformou a fraude em modelo de negócio. Significa reconhecer que consumidores, investidores, reguladores e sociedade civil compartilham, em diferentes graus, a responsabilidade por sustentar essa máquina de mentiras.

No auge do cúmulo, a Justiça de São Paulo determinou a soltura de alguns envolvidos, mediante tornozeleira eletrônica e fiança de R$ 25 milhões. Assim a banda toca: seguimos reféns do espetáculo da mentira, enquanto a confiança social se dilui a cada decisão que privilegia poderosos e endinheirados.

Talvez seja essa a lição mais dura que Diógenes nos deixou: sua lamparina, mais do que iluminar a ausência de homens honestos, revela a falência de instituições corrompidas pela falsidade. Enquanto a mentira seguir sendo método de governo, engrenagem empresarial e prática cotidiana no Brasil, não haverá luz suficiente para restaurar a confiança coletiva.

O futuro não depende de esperar pelo surgimento de homens honestos, mas de construir mecanismos concretos que tornem a desonestidade inviável e a impunidade insustentável. O caso Ultrafarma deveria servir não apenas como denúncia de promiscuidade corrosiva entre poder público e privado, mas como ponto de inflexão: ou o país enfrenta a corrupção de forma estrutural, punindo corruptores e corruptos sem distinção, ou continuará caminhando às cegas, sem a lamparina de Diógenes e sem horizonte de justiça.

Antonio Sérgio Neves de Azevedo é doutorando em Direito, em Curitiba, Paraná.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 18/08/2025