E, agora José? A profecia da água em São Paulo
Por Antonio Sérgio Neves de Azevedo
“E, agora José?”, a pergunta que atravessa a literatura brasileira ganha novo sentido em tempos de colapso climático. Não é apenas metáfora poética, mas advertência concreta: quando a água faltar, quando a sede for sentença, quando o Estado tiver entregue ao mercado aquilo que deveria proteger como sagrado, restará apenas o silêncio incômodo da pergunta que ninguém quer responder.
O verão europeu de 2025 entrará para a história como um dos mais letais já registrados. As mudanças climáticas triplicaram a letalidade da onda de calor, resultando em milhares de mortes atribuídas às altas temperaturas. Em junho, o calor sufocante transformou Lisboa, Roma, Madri e outras cidades europeias em verdadeiros fornos a céu aberto. A natureza, antes contida, tornou-se aviso: um prenúncio de que o mundo experimenta, em doses cada vez mais mortais, os efeitos da emergência climática. Enquanto a Terra aquece e a escassez de água se espalha, São Paulo, o estado mais rico, industrializado e populoso do Brasil, escolheu a contramão da história: privatizou sua principal defesa hídrica, a Sabesp.
Enquanto a Europa arde, São Paulo vive sua própria emergência. Os mananciais que abastecem a Grande São Paulo diminuem a cada dia. A queda é alarmante e rememora a estiagem de 2014-2015. Reservatórios como Cantareira, Alto Tietê, Guarapiranga, Alto Cotia, Rio Grande, Rio Claro e São Lourenço sangram lentamente. Seus níveis caem dia após dia, revelando o Efeito José: a memória cruel da água que, mesmo após anos de chuva, deixa de fluir onde mais se precisa. Detalhe: o Efeito José é metáfora e alerta, fartura passageira, descaso permanente; abundância que não corrige negligência; escassez que castiga sem piedade.
Não se trata apenas de clima. Trata-se também de política, economia e justiça social. Quando o Estado se rende à lógica do lucro e a água deixa de ser direito humano para se tornar mercadoria, o Efeito José escancara a escolha cruel de governos, privilegiar quem pode pagar e abandonar quem depende da proteção pública.
Os alertas são claros, os níveis dos reservatórios estão no pior patamar desde 2015, quando milhões enfrentaram torneiras secas e rodízios. Nesse cenário, o neoliberalismo se revela agente de destruição. Criada nos anos 1970 para enfrentar crises hídricas e garantir água para todos, a Sabesp foi transformada em ativo financeiro, reduzida a instrumento de lucro pelo atual governo. A lógica é implacável, torneiras cheias para quem paga, sede para quem não pode pagar. Privatizar a Sabesp não foi modernização, mas abdicação do dever mais elementar do Estado, salvar vidas em tempos de calamidade.
O drama não é exclusivo de São Paulo. Outros estados também sofrem com estiagens e mananciais pressionados. Mas a privatização paulista é aviso nacional, quando o mercado assume o controle da água, milhões ficam expostos ao próximo Efeito José.
Não faltam fundamentos para a crítica. Em 2010, a Assembleia Geral da ONU, pela Resolução A/RES/64/292, declarou a água limpa e segura e o saneamento como direitos humanos essenciais. Privatizar esse direito é negar sua universalização e transformá-lo em privilégio.
O profético, neste caso, não é literatura, é ciência e história. A África enfrenta colapsos hídricos, o Oriente Médio disputa rios, e a Europa de 2025 contabiliza milhares de mortes por calor enquanto várias cidades, como Berlim e Paris, reestatizam a água. Especialistas são unânimes: ondas de calor serão cada vez mais frequentes e intensas. Mas os impactos não são iguais, atingem com mais força os pobres, os periféricos, os esquecidos. O Efeito José, quando se manifestar em sua plenitude, será a lembrança cruel de que o Estado entregou ao mercado aquilo que deveria proteger como sagrado: a água.
Assim, se a estiagem persistir em 2025 e avançar em 2026, o cenário pode ser ainda mais grave do que em 2014-2015. Quando a seca voltar, quando milhões enfrentarem sede e torneiras vazias, a Sabesp pública fará ainda mais falta, não apenas pela tarifa mais baixa, mas pelo pacto social que uma empresa privada jamais terá interesse em manter. Água não é mercadoria: é vida e direito. É limite civilizatório.
Portanto, o Brasil não pode repetir esse erro. A emergência climática de 2025, com a Europa em colapso térmico e os reservatórios paulistas em queda, exige mais Estado, mais solidariedade e mais planejamento. Ignorar o Efeito José é cumprir uma profecia sombria, reservatórios secos, desigualdade ampliada, um país que compreenderá tarde demais que a água não é luxo, mas direito sagrado.
O colapso ambiental não será episódio isolado, mas reflexo de uma lógica perversa que transforma vida em mercadoria. A Europa de 2025 já foi aviso. São Paulo, ao entregar sua água ao mercado, escolheu o lucro em vez da sobrevivência. O Efeito José não perdoará: rios, reservatórios e nascentes denunciarão a omissão de um Estado que falhou em proteger o essencial.
A escassez será a sentença. A sede, o julgamento.
E, quando o último reservatório secar, São Paulo terá aprendido, tarde demais, que água não é mercadoria. Nesse dia, o Efeito José se transformará em pergunta inevitável: E, agora, José?
Antonio Sérgio Neves de Azevedo é doutorando em Direito, em Curitiba, Paraná.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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