Para além do IOF
Por Antonio Sérgio Neves de Azevedo*
O embate entre Governo e Legislativo sobre o IOF vai além da tecnicalidade: está em jogo o equilíbrio entre os poderes, a legitimidade da política tributária e a defesa da democracia.
Ou seja, a recente derrubada, pela Câmara dos Deputados, do decreto que ajustava alíquotas do IOF expõe uma crise institucional de contornos profundos: trata-se não apenas de um impasse fiscal, mas de uma disputa sobre os fundamentos da democracia tributária e os limites constitucionais entre os Poderes (princípio da tripartição de poderes, inspirado na teoria de Montesquieu, presente na obra ‘O Espírito das Leis’ que estabeleceu três poderes independentes e harmônicos entre si: Legislativo, Executivo e Judiciário).
No contexto brasileiro, essa divisão é explicitada no Artigo 2º da Constituição, que afirma: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Essa independência, no entanto, não é absoluta, sendo atenuada pelo sistema de freios e contrapesos, que permite a cada poder influenciar e fiscalizar a atuação dos demais, dentro dos limites estabelecidos pela própria Constituição.
Importante ressaltar que o sistema de freios e contrapesos ou ‘checks and balances’ visa evitar o abuso de poder, garantindo que cada poder atue dentro de suas atribuições e exerça um controle sobre os demais, promovendo a harmonia e o equilíbrio entre eles.
Dito isso, o Decreto nº 12.499/2025, editado com base na competência expressa do Presidente da República no artigo 153, §1º da Constituição, visava arrecadar até R$ 12 bilhões por meio da tributação de operações cambiais, fundos exclusivos, aplicações no exterior e seguros – setores que concentram riqueza e historicamente escapam à carga tributária proporcional.
Não era, portanto, um aumento de impostos aleatório, mas uma medida orientada pela ideia de justiça fiscal: fazer com que os mais ricos contribuam mais em um país marcado por desigualdades profundas.
Ao sustar esse decreto, o Congresso invocou o artigo 49, inciso V da Constituição, alegando que o Executivo havia exorbitado suas funções.
A Advocacia-Geral da União (AGU), porém, argumenta com precisão que não se trata de regulamentação, mas de exercício direto de competência constitucional atribuída ao chefe do Executivo.
A judicialização da matéria pelo governo no Supremo Tribunal Federal (STF), portanto, é legítima, necessária e pedagógica. Afinal, está em jogo o princípio da separação dos poderes, uma cláusula pétrea da Constituição Federal.
Conforme entendimento constitucional, é preciso lembrar que a função normativa do Executivo sobre o IOF não exige lei ordinária específica, desde que respeitados os limites de legalidade, anterioridade e finalidade extrafiscal – todos presentes no caso concreto.
A tentativa de anular o decreto por razões políticas afronta e transgredi a harmonia entre os Poderes e pode gerar jurisprudência perigosa para o futuro da política tributária brasileira. Entretanto, esse debate não pode ficar restrito aos corredores de Brasília.
É urgente politizar essa questão no melhor sentido da palavra – a discussão sobre quem paga impostos no Brasil. Politizar é esclarecer. É envolver a sociedade em um tema que afeta a todos.
Afinal, enquanto os mais pobres pagam impostos embutidos no arroz, no gás e na passagem de ônibus, há quem movimente milhões em fundos exclusivos e ‘offshores’ sem qualquer progressividade tributária.
Nesse sentido, o IOF, como instrumento extrafiscal, permite ao Estado reequilibrar essa balança sem recorrer a reformas complexas ou longas batalhas parlamentares.
Nesse cenário, o Supremo Tribunal Federal, por sua vez, não julgará apenas um decreto. Julgará a solidez do pacto constitucional, a previsibilidade das normas fiscais e, sobretudo, a responsabilidade institucional diante do sistema democrático.
Ou seja, em um país que ainda se recupera dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, em que os próprios ministros do STF foram alvos de violência e ameaças, não se pode normalizar nenhum tipo de usurpação de competências. As instituições precisam reafirmar seus papéis com firmeza – e a Corte tem a oportunidade de fazê-lo de maneira pedagógica.
Por fim, esse episódio reforça a urgência da participação popular nos debates sobre tributação em nosso País.
A sociedade precisa saber quem está votando para beneficiar setores específicos e quem está comprometido com um Brasil mais justo e equitativo – como fundamento para construir uma sociedade inclusiva, em que todos tenham a oportunidade de prosperar.
Nesse sentido, a justiça como equidade, proposta por John Rawls, oferece um marco ético poderoso: ela parte da ideia de que a estrutura básica da sociedade deve ser organizada de modo a beneficiar prioritariamente os menos favorecidos. Rawls propõe que, numa posição original de igualdade, as pessoas escolheriam princípios que assegurassem proteção e oportunidades justamente àqueles em situação mais vulnerável.
Aplicado ao sistema tributário, isso significa reconhecer a função redistributiva da tributação como instrumento legítimo de correção das desigualdades – desde que feita com transparência fiscal, controle social e acesso público à informação. Assim, consolidam-se os pilares de uma democracia madura e orientada pela justiça com equidade.
Dessa forma, se o sistema tributário nacional é uma ferramenta de poder, o povo brasileiro deve ter voz ativa através da politização, por exemplo, dessa questão para decidir como esse poder será exercido.
Mesmo porque, a democracia não se sustenta apenas com eleições: ela exige vigilância, consciência e presença constante. E isso inclui saber, com clareza, quem paga – e quem deveria pagar – a conta do Brasil.
*Antonio Sérgio Neves de Azevedo é mestre e doutorando em Direito – Curitiba/Paraná.