O artigo Por um letramento socialista: um chamado à renovação da democracia no Brasil, de Evandro Menezes de Carvalho, publicado em 2 de agosto no Brasil247, é uma verdadeira salada de conceitos que são, sobretudo, e apesar do título, antissocialistas e antimarxistas.
Para começar, a própria ideia de “letramento”, o que pode ser entendido por educação, já foi refutada por Karl Marx nas famosas teses de Feuerbach. Na tese 3, que diz que o “educador tem ele próprio de ser educado”. E, mais especificamente, a de número 11, que diz que “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Na mesma linha, Lênin já havia proposto que a teoria revolucionária tem que estar intimamente ligada à prática revolucionária.
A crença de que o mundo pode ser mudado partindo da educação já foi superada há tempos, basta olhar para a realidade: o capitalismo tem deteriorado sistematicamente a educação, apenas uma revolução socialista poderá reverter o quadro. Em outras palavras, é o socialismo que irá promover a educação.
O texto Evandro Menezes de Carvalho até que começa bem, diz que “a palavra “socialismo” tem sido demonizada e usada como espantalho ideológico por muitos que, paradoxalmente, jamais se preocuparam com o fortalecimento da democracia ou com a justiça social. Rejeitada como ameaça por elites que historicamente governaram para si, e não para o povo, a ideia socialista tornou-se tabu em debates públicos – como se sua simples menção desestabilizasse as fundações da sociedade democrática”.
No mesmo parágrafo, porém, o autor diz que “o tempo histórico nos cobra uma reavaliação crítica. É hora de iniciarmos um processo de letramento socialista: um aprendizado que vá além da caricatura para buscar, de fato, compreender o que o socialismo pode oferecer à democracia, à justiça e ao bem viver coletivo nos tempos atuais”. Existe aí um problema, o socialismo não se propõe a “melhorar a democracia”, pois um Estado democrático não deixa de ser Estado, cujo fundamento é manter a classe trabalhadora sob a escravidão assalariada.
O propósito dos socialistas é abolir a ordem vigente, que é burguesa. A crítica da justiça burguesa, visa denunciar as arbitrariedades, impedir maiores desmandos das instituições do Estado, que esmaga a classe trabalhadora. Dessa maneira, as massas são conscientizadas e educadas na luta que assim se fortalece. Trata-se de um processo dialético.
Academicismo
Carvalho acaba se perdendo em meio às palavras. Escreve que “o conceito de ‘letramento’, oriundo dos estudos da linguagem e da educação, refere-se à capacidade de interpretar criticamente os códigos simbólicos e culturais que estruturam a vida social. Atualmente é bastante utilizado para se referir ao processo de desenvolvimento da consciência crítica sobre as desigualdades raciais e sociais que afetam as minorias marginalizadas”.
Como se pôde notar, o autor quer colocar a educação como motor de uma mudança que ele mesmo não sabe dizer como implementar. Como se dará isso, por meio de cursos, debates? Para a pequena burguesia, a vida não é urgente, pode ficar debatendo indefinidamente. Além disso, o articulista aproveita para introduzir a questão racial, muito em moda após a infiltração do identitarismo na esquerda.
No mesmo parágrafo, Carvalho escreve que “a proposta de um ‘letramento socialista’ implica o reconhecimento de que o socialismo, adaptado às realidades históricas do país, oferece elementos heurísticos relevantes para ampliar a nossa compreensão sobre as diferentes formas de organização da sociedade que possam aprimorar a nossa democracia”. É uma verdadeira confusão.
Isso de “adaptado às realidades históricas” e “nossa democracia” tem cheiro do “socialismo moreno que pregava Leonel Brizola e não passa de revisionismo.
Mais adiante, Carvalho escreve que “letramento socialista que proponho não é um convite ao sectarismo, tampouco à reprodução acrítica de modelos exógenos. Ele é, antes de tudo, uma abertura intelectual e ética ao debate sobre outras formas possíveis de organização social, política e econômica. Trata-se de olhar para o mundo com lentes mais amplas, que nos permitam romper com a naturalização de um modelo liberal-capitalista que se apresenta como o único possível — mesmo quando este já não responde às necessidades mais urgentes das sociedades, sobretudo as periféricas”. – [grifos nossos].
Carvalho rejeita o marxismo e todo o legado revolucionário que ele aqui chama de “modelos exógenos”, ou seja, vindos de fora. Ao mesmo tempo, propõe de uma maneira vaga forma “alternativa” ao liberalismo.
Uma das alternativas que o autor propõe é “modelo chinês”, que não é socialista, e que ele trata como “uma das maiores forças de inovação”. A China, como é sabido, está recheada de bilionários e as contradições e a luta de classes estão longe de terem sido abolidas, e os choques são apenas questão de tempo.
Fazendo mais uma concessão ao identitarismo, Carvalho escreve que “letramento socialista deve ganhar as cores do Brasil. Importa recuperar as lições de nossos povos originários que há séculos praticaram e praticam formas comunitárias de organização baseadas na partilha, no respeito à natureza e no cuidado com o outro”. Assim, da China, damos um salto para uma espécie de comunismo primitivo. E, como se não bastasse, o articulista diz que quanto mais estuda a filosofia chinesa, mais vê “conexões com lições dos nossos povos originários”.
Cabe todo mundo
Virou moda entre setores esquerda que qualquer um pode ser revolucionário, esquerdista; e neste artigo não é diferente. Evandro Menezes de Carvalho sustenta que “o letramento socialista não exige conversão ideológica, mas disposição para aprender. É um convite ao diálogo com experiências concretas, com saberes ancestrais e com as urgências de nosso tempo. Ele exige humildade para reconhecer que a democracia liberal não é a única forma legítima de governo, e que a construção de uma democracia substantiva, socialista, requer novas práticas, novas instituições e novos imaginários”.
Tudo isso não passa de misticismo, um pensamento religioso, que acredita que tudo é uma questão de boa vontade. Uma espécie de movimento hippie, “um gesto civilizatório e visando o fortalecimento de nossa democracia”. Não tem nada de socialismo aí; é, como o autor mesmo confessa, “exercício de imaginação política”.
O problema dessa esquerda, se é que se pode chamá-la assim, é sua completa falta de conexão com os interesses e necessidades da classe trabalhadora. Essas pessoas que hoje falam mansamente em se construir um mundo melhor, não se sabe como ou quando, são as primeiras a se levantarem contras as tendências revolucionárias das massas, que se enfrentam com um imperialismo em franco declínio e extremamente belicoso.