Anistia para um projeto golpista e assassino

por Gustavo Tapioca

O julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal não é apenas o processo de um ex-presidente que repercutiu ao redor do mundo. Trata-se da análise de um projeto autoritário de longa duração — um golpe assassino, que começou a se estruturar com o impeachment de Dilma Rousseff, se aprofundou durante os quatro anos de governo Bolsonaro, explodiu no 8 de janeiro de 2023, e ainda continua.

O que hoje o Supremo julga não é uma conspiração pontual. É um golpe continuado, planejado, testado e reatualizado ao longo de quase uma década. Seu ponto de partida pode ser identificado no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. No dia da votação, Jair Bolsonaro, então deputado, deixou clara a natureza do projeto que viria a encarnar:

“Nesse dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para a história. Parabéns, presidente (da Câmara) Eduardo Cunha. Eles perderam em 64, perderam agora em 2016, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, meu voto é sim”.

O fio do golpe: de 2016 ao 8 de janeiro

Ao homenagear Eduardo Cunha, pivô da crise política, e ao reverenciar tanto o golpe de 1964 quanto o coronel Ustra, Bolsonaro apontava para o futuro que ele queria. Retomar o modelo que ele adotou há muito tempo e chama orgulhosamente de seu: a  ditadura militar de 1964 a 1985 que sequestrou, prendeu, torturou e matou centenas de pessoas.

O impeachment de Dilma não foi o fim de uma disputa política, mas o primeiro degrau do projeto golpista da extrema direita que desembocaria no assalto às instituições em 2023.

O nome exaltado por Bolsonaro naquele 17 de abril de 2016 não era um detalhe. O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra comandou o DOI-CODI de São Paulo entre 1970 e 1974, no período mais sangrento da ditadura de 1964 a 1985. Reconhecido pela Justiça como torturador, Ustra foi responsável direto pela morte e “desaparecimento” de dezenas de opositores, além da prática sistemática de torturas contra presos políticos.

Símbolo da tortura, “herói” de Bolsonaro

Dilma Rousseff, jovem militante contra a ditadura, esteve entre suas vítimas. Presa e torturada, ela simboliza o contraste entre a brutalidade do regime e a resistência democrática. Ao citar Ustra, Bolsonaro não apenas atacava Dilma, mas canonizava o torturador como referência para sua própria trajetória política.

Brilhante Ustra, considerado “herói” por Bolsonaro, foi um dos mais violentos torturadores da ditadura militar (1964–1985). Sob seu comando, o DOI-CODI se tornou um centro de suplícios. Entre as vítimas que denunciaram as torturas estavam nomes célebres da resistência democrática, como a própria Dilma Rousseff e o jornalista Vladimir Herzog — morto em 1975 em circunstâncias que escancaram a brutalidade do regime —, além de centenas de militantes anônimos que desapareceram nas celas do Estado.

Para Bolsonaro, Ustra era “um herói que evitou que o Brasil se tornasse uma ditadura comunista”; para suas vítimas, foi o rosto mais cruel da repressão, sinônimo de medo, humilhação e morte.

O projeto assassino que não acabou

Ao chegar ao poder em 2019, Bolsonaro não abandonou esse ideário. Governou contra as instituições, cortejou quartéis e insuflou sua base com ameaças constantes de ruptura. A conspiração golpista não começou no fim de seu mandato — foi a lógica de todo o seu governo. O 8 de janeiro de 2023 foi apenas a explosão de um processo que vinha sendo alimentado desde 2016. E insiste em continuar.                                                     

As revelações trazidas ao julgamento de Jair Bolsonaro, seus generais de quatro estrelas, militares de alta patente, ex-ministros e ex-assessores especiais relembram Brilhante Ustra, em várias ocasiões, que continua sendo herói dos Bolsonaro.

A conspiração buscava instalar uma ditadura militar, eliminando fisicamente líderes eleitos e figuras de resistência institucional. Tal como ocorreu nos anos de chumbo, a violência extrema era vista como instrumento legítimo por um grupo que nunca aceitou as regras do jogo democrático.

Punhal Verde Amarelo: o plano sinistro da ditadura

Documento revelado pela Polícia Federal mostra que a extrema-direita bolsonarista articulava assassinatos, sequestros e fechamento das instituições para impedir a posse de Lula e Alckmin. Não foi delírio conspiratório, mas um roteiro de golpe de Estado, impresso dentro do Palácio do Planalto.

A Polícia Federal revelou em 2024 a existência de um documento intitulado Plano Punhal Verde Amarelo, produzido em novembro de 2022, logo após a vitória de Lula nas urnas. O texto descrevia, em detalhes, um roteiro golpista para impedir a posse do presidente e do vice, democraticamente eleitos.

O Punhal era um projeto de eliminação física de opositores. Caso tivesse sido executado, Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes seriam as primeiras vítimas. Os nomes que encabeçavam uma longa lista de pessoas a serem assassinados

O simbolismo do “punhal” e das cores da bandeira

A escolha do nome não foi acidental. O “punhal” remete a ataque traiçoeiro e mortal, evocando a ideia de golpe contra a democracia. Já o adjetivo “verde e amarelo” buscava travestir o plano criminoso sob a capa de nacionalismo, apropriando-se das cores da bandeira para justificar um projeto de terror.

Alguns analistas lembraram ainda que o título alude à “Noite dos Longos Punhais”, episódio nazista de purga violenta contra opositores, deixando claro que a extrema-direita brasileira pretendia impor o poder por meio de sangue e violência.

A vitória da resistência democrática.

O fracasso desse plano macabro não ocorreu por acaso. Foi resultado da resistência das instituições, da mobilização popular e da vigilância internacional. A revelação do Punhal Verde Amarelo prova que a tentativa de golpe não foi improviso.Tratava-se de um projeto planejado de extermínio político e reinstauração da ditadura militar.

O Brasil esteve a um passo de reviver os horrores de 1964. O “punhal” não foi cravado porque a democracia, ainda ferida, mostrou fôlego para resistir. Mas a ameaça permanece viva.

Hoje são precisamente os parlamentares bolsonaristas — sócios do Punhal Verde Amarelo — que tentam aprovar uma anistia ampla para todos os líderes e liderados do plano macabro, transformando crime em esquecimento e golpe em impunidade.

Um julgamento contra a barbárie.

O julgamento de Bolsonaro é visto como um teste de soberania e de maturidade institucional. O Brasil mostra que pode dizer “não” à barbárie e impor limites ao fascismo tropical. O processo conduzido pelo STF é uma necessidade de sobrevivência democrática. Deixar impunes o projeto golpista e os planos de assassinato significaria naturalizar a violência política como método.

A mídia internacional observa com atenção. E a democracia brasileira, ainda jovem e marcada por traumas, demonstra que não se curvará diante da extrema-direita. Não se trata apenas de punir um homem ou um grupo de golpistas, mas de afirmar a sobrevivência da República contra aqueles que pretendiam —  e ainda pretendem —  destruí-la com sangue e ferro.

O STF, portanto, não julga apenas um ex-presidente e seus cúmplices. Julga o método bolsonarista e da extrema direita global: o de minar, corroer, destruir a democracia. Um projeto que reverencia torturadores, deslegitima adversários e considera o Estado de Direito um obstáculo a ser destruído.

ANISTIA???

Gustavo Tapioca é jornalista formado pela UFBa e MA pela Universidade de Wisconsin. Ex-diretor de Redação do Jornal da Bahia. Assessor de Comunicação da Telebrás, Oficial de Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do IICA/OEA. Autor de Meninos do Rio Vermelho, publicado pela Fundação Jorge Amado.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 08/09/2025